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Retrato de Uma Jovem em Chamas
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Retrato de uma Jovem em Chamas

Avaliação:
8/10

8/10

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Crítica | Ficha técnica

Com primor semelhante ao de uma pintora, a diretora Céline Sciamma leva para as telas, em Retrato de Uma Jovem em Chamas, o delicado romance entre duas mulheres no final do século 18.

A história

A artista Marianne chega a uma ilha pouco habitada para pintar o retrato de Héloïse, que a mãe dela precisa enviar ao seu futuro marido. Porém, como a filha é contra esse casamento arranjado com um homem que ela desconhece, Marianne precisa construir a pintura sem que a jovem perceba. Logo, a convivência diária entre as duas despertará um sentimento de afeição cada vez mais intenso.

O filme dedica parte de sua duração no processo de criação de Marianne, que inicia o retrato de Héloïse a partir de traços que caprichosamente tentam reproduzir as imagens que ela retém da jovem enquanto passam o dia juntas. Meticulosamente, ela traça, apaga e desenha novamente a silhueta com giz de carvão. Depois, lança as tintas com pinceladas criteriosas.

Tela da pintura, tela do cinema

O processo criativo da pintora se espelha em outra tela, a do cinema. Nesse sentido, no lugar do pincel, a diretora Céline Sciamma usa a câmera para criar seu filme, com pinceladas criativas transformadas em planos.

Para apresentar Héloïse, ela nos coloca na perspectiva de Marianne. A jovem surge de costas, enquanto a pintora a segue. Pouco ela vê do objeto que ela terá que retratar. Aos poucos, sua imagem é exposta. Primeiro, ela tira o capuz e seus loiros cabelos surgem. Depois, ela se vira e o rosto, enfim, se revela.

Logo após essa introdução, as duas se postam lado a lado, contemplando o mar a partir de um desfiladeiro. O enquadramento foi calculadamente planejado para que, quando Marianne olhe para frente, o perfil de seu rosto encobre a face de Héloïse. Quando a pintora olha para a jovem, vemos Héloïse virando seu rosto para encará-la. A cena evidencia a dificuldade que a artista enfrentará para observar o objeto da obra que lhe foi encomendada.

Dissimulação

Esse processo dissimulado resulta num retrato artificial. Com a autorização concedida pela mãe da jovem, Marianne mostra o quadro para Héloïse, que não consegue ver a si mesma na pintura. Mas concede à pintora uma nova chance, desta vez aceitando posar para o retrato. A mensagem implícita de Héloïse vai além do quadro, ela está concedendo permissão para que as duas se aproximem afetivamente.

Marianne, ao queimar o quadro que o pintor contratado antes dela não conseguiu terminar percebe o elemento essencial para conseguir o retrato autêntico. O filme mostra isso sem palavras, mas a partir da imagem desse quadro anterior sendo queimado a partir do coração da mulher ali parcialmente pintada.

A essência

Então, o novo processo de criação marca também a abertura das duas mulheres como pessoas na sua essência, e não apenas partes de uma relação contratual. Isso se torna evidente, principalmente, porque ambas se aproximam da empregada da casa, e até a ajudam a realizar um aborto. Esse procedimento cirúrgico improvisado é marcado por uma imagem forte. Na cama onde o aborto acontece, a garota está deitada ao lado do bebê da parteira, forçando veladamente uma reflexão sobre a questão do aborto.

O clímax sentimental de Retrato de Uma Jovem em Chamas, refletido em seu título, se passa num momento mágico, quando Marianne e Héloïse acompanham a empregada em uma celebração ao redor da fogueira com as moradoras locais. A música cantada pelo coral das mulheres embala a troca de olhares profundos entre as duas mulheres que comunicam a paixão entre elas. Simbolicamente, o vestido de Héloïse encosta na fogueira e pega fogo.

Após alguma hesitação, as duas finalmente se entregarão aos seus desejos sexuais. As cenas são delicadas e breves. A hesitação se deve ao fato de que Héloïse cresceu em um convento. Por isso, a ideia da mulher imaculada continua a assombrar Marianne, que imagina visões dela com um vestido branco.

Poesia

Eventualmente, uma poesia lida por Héloïse desperta em Marianne uma ligação com a situação das duas. Na leitura, o poeta sabe que se olhar para a mulher amada, ela morrerá. Mesmo assim, ele olha, porque prefere guardar a memória. De maneira análoga, Marianne enfrenta a mesma situação, pois, se terminar o quadro, nessa segunda chance, Héloïse se casará e as duas nunca mais se verão. No entanto, a estória acontece no final do século 18, e a jovem sabe que não existe alternativa para o destino traçado pela sua família.

Por fim, Marianne descobrirá que, mesmo seguindo seu caminho, Héloïse nunca a esquecerá. E, num retrato da agora casada Héloïse, Marianne percebe que ela segura um livro que indica a página 28, onde está o autorretrato que a pintora lhe presenteou. Em outra ocasião futura, Marianne vê Héloïse chorando copiosamente enquanto ouve o Concerto Nº 2 de Vivaldi tocado por uma orquestra. Na verdade, a mesma música que Marianne usou para explicar para Héloïse o som de uma orquestra, que era desconhecido para ela, porque ela viveu num convento e não teve a liberdade que Marianne sempre gozou. Casada, ela se vê na mesma situação, sem liberdade para viver a paixão maior de sua vida.

Concluindo, Retrato de Uma Jovem em Chamas apresenta belas soluções imagéticas para contar com delicadeza a estória do amor freado pela tradição limitadora de sua época. Defintivamente, o paralelo entre o processo criativo da pintura e do cinema é sublime.


Retrato de Uma Jovem em Chamas
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