Johnnie To além da ação
Johnnie To é um cineasta lembrado por seus filmes de ação, mas Romancing in Thin Air (2012) não é um deles. O fato está posto. Junto a ele estão John Woo, Benny Chan ou Tsui Hark, que compõem uma pequena fatia da densidade que é o cinema de Hong Kong pós-boom. Todos são marcados por seus filmes de ação, mas sempre articularam certo flerte com o romance. Hark e Chan têm romances belíssimos. Até mesmo Woo se aproxima do gênero, mesmo que de forma mais contida (sempre cultivando a ação como alicerce).
A desvinculação de To com a ação é quase ingrata. O diretor sempre estará atrelado ao gênero, tendo produzido algumas obras-primas recentes. Em particular, PTU (2003) é a que mais me toca, mas definitivamente não a única que me impressiona. Porém, ele parece não confundir vinculação com aprisionamento. As linhas que conectam não precisam amarrar, e Johnnie To infere esse fato com mais perspicácia que a maioria dos cineastas da atualidade.
Assistir ao seu Don’t Go Breaking My Heart (2011) foi mais um tiro no escuro que um investimento consciente. A fácil acessibilidade ao longa (que está disponível na Netflix no momento em que essa crítica é publicada) foi determinante. E que sorte a minha – se é que dá pra falar de sorte com a irremediável consistência do honconguês. No fim da jornada me vi enternecido, e urgentemente em busca de mais experiências como aquela. Ele filmava romances como filmes de ação, porque um amor unilateral é tão ameaçador quanto uma arma.
“Cinema é a fraude mais bonita do mundo”
Romancing in Thin Air conta a história de pessoas que perderam seus cônjuges. Sue (Sammi Cheng ) vive no passado, estagnada na fantasia utópica que seu marido – perdido na floresta há 7 anos – retorne para casa. Michael (Louis Koo) é um famoso ator de cinema que se torna alcoólatra depois de sua esposa trocá-lo em pleno altar, e na frente de toda imprensa. O percurso dos personagens é (obviamente) deixarem de recusar o passado, para juntos, gozarem do presente.
A narrativa é óbvia, antecipa-se tudo nos primeiros minutos de rodagem. Então, por que esse filme seria tão especial? To dirige o longa com destreza, sua elegância é inegável, desde os vistosos movimentos de grua até a composição dos enquadramentos. Esse seria “apenas” mais um bom filme abarcado pelo primoroso vigor estilístico de To, mas não é. Tem algo a mais. E esse aditivo, que não só preenche como transborda, está no fim do filme.
Existe, e aqui piso em ovos para não dar spoilers, um filme dentro do filme, que está mais para uma declaração cinematográfica. Uma declaração de um personagem para outro, e também de To para o cinema. O ecrã é criador de mitos, mas “temos a arte para não morrer da verdade”, disse Friedrich Nietzsche em “Vontade de Poder” (publicado depois de sua morte – o que só torna a citação mais específica a essa obra-prima). No fim, Romancing in Thin Air me lembra uma famosa frase de Godard: “Cinema é a fraude mais bonita do mundo”.
Fato é que alguns filmes usam do cinema para contar belas histórias, outros usam belas histórias para contar sobre cinema.
Texto escrito pelo crítico e universitário de cinema Enrico Mancini, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
Romancing in Thin Air | Gao hai ba zhi lian II | 2012 | 111 min | Direção: Johnnie To | Roteiro: Jevons Au, Ka-Fai Wai, Nai-Ho Yau | Elenco: Louis Koo, Sammi Cheng, Yuanyuan Gao, Baoqiang Wang, Guangjie Li, Yi Huang.