Sede Assassina (To Catch a Killer / Misanthrope) se equipara aos melhores filmes policiais de suspense já feitos recentemente. Seu diretor é o argentino Damián Szifron, que realiza poucos longas para o cinema, mas quando faz, faz bem. O segundo e mais recente é Relatos Selvagens (Relatos Salvajes) de 2014. Desta vez, estreia na indústria norte-americana, com uma obra contundente.
A abertura do filme já indica que estamos diante de um trabalho diferenciado. É réveillon em Baltimore, e os fogos de artifício ecoam entre os prédios da grande cidade. Porém, em distintas festas nos andares mais altos, um dos estrondos não vem dessas bombas comemorativas, mas de um tiro de longe que acerta algumas pessoas. No saldo final, 29 vítimas alvejadas por tiros certeiros. A policial Eleanor (Shailene Woodley) atende um dos locais com vítimas e acompanha a localização da origem dos disparos – num procedimento interessante da balística com uso de lasers. De longe, ela vê o local explodir e corre para lá, onde conhece Lammark (Ben Mendelsohn), o investigador-chefe do FBI responsável por elucidar esse crime inusitado. Esse encontro fugaz é suficiente para o experiente investigador requisitar a policial para auxiliá-lo nesse caso. No dia seguinte, Lammark dá um discurso arrasador para o departamento de polícia. Pronto, a partir daí o espectador embarca junto na difícil tarefa de encontrar esse criminoso fora comum.
A trama, que se apresenta instigante desde essa parte inicial, fica ainda mais tensa quando outro crime acontece. É provável que seja o mesmo suspeito. Um homem ataca com extraordinária letalidade num shopping, deixando mais uma dezena de vítimas. Portanto, há pressa em descobrir quem ele é, pois novos ataques são iminentes.
Eleanor e o suspeito
Porém, por mais incrível que seja esse enredo, ele não é o que Sede Assassina tem de melhor. O maior trunfo do filme está nos seus personagens. Em especial, nos protagonistas Eleanor, Lammark e no misterioso criminoso.
Eleanor, numa estupenda atuação de Shailene Woodley, possui várias feridas, tanto psicológica quanto fisicamente, estas resultantes da primeira. Na verdade, Lammark não a escolheu por ser inteligente, que ela de fato é, mas por ser emocionalmente abalada. O espectador sabe que ela é introspectiva, mora sozinha e busca alívio nadando solitariamente numa piscina. Além disso, o investigador-chefe descobriu que ela não conseguiu entrar no FBI porque, apesar de passar nos testes de inteligência, não recebeu aprovação comportamental. Seus testes psicológicos revelaram que ela é antissocial e agressiva. E Lammark a recruta justamente porque ela pode, por isso, pensar como o suspeito.
Aliás, os dois títulos originais indicam essa chave na relação entre Eleanor e o criminoso. Um deles, “To Catch a Killer”, vem daquele discurso de Lammark na delegacia, quando diz que para pegar um assassino é preciso pensar como ele. O outro título, “Misanthrope”, cabe tanto para Eleanor quanto para o suspeito. Ou seja, os dois são pessoas que sentem aversão às pessoas. Obviamente, a misantropia do criminoso é muito mais grave, num patamar patológico. É daí que afirmamos que o suspeito é um personagem muito forte. Pois, mesmo sem sabermos quem ele é, suas características ficam cada vez mais definidas conforme as investigações avançam. No final, o confronto dele com Eleanor confirma a proximidade desses dois protagonistas.
Lammark
E Lammark é um daqueles personagens soberbos para a narrativa. Da sua energia, por vezes desmesurada, vem seu carisma. Para executar com eficiência seu trabalho, ele não admite interferências alheias. Mas não consegue, e precisa lidar com pares incompetentes e superiores preocupados com questões políticas. Convicto de suas ideias, sua segurança faz um perfeito contraste com a fragilidade de Eleanor. Este ponto, aliás, compõe a transformação da personagem da policial ao longo da trama. Por fim, para deixar Lammark ainda mais interessante, ele é casado com um homem. E, tal como Shailene Woodley, o ator Ben Mendelsohn está magnífico, com uma presença na tela digna do seu personagem.
Para completar, Sede Assassina ainda possui o tom correto, sempre sério como pede a trama. Há apenas uma intervenção cômica, totalmente inesperada, quando o agente da equipe de Lammark recebe uma notificação no seu celular e todos pensam que está relacionado à investigação, mas é uma questão pessoal.
Além disso, o filme traz uma segunda camada marcada pelo cinismo. Isso surge em trechos esparsos. Por exemplo, quando Lammark ouve que prenderam um suspeito negro, sabendo que o suspeito é claramente branco. Ou quando o funcionário do lixão comenta que a separação de lixo orgânico e não-orgânico não existe na prática, é apenas para estimular a consciência das pessoas. Da mesma forma, a cena no abatedouro faz questão de colocar imagens assustadoras dos bois que viraram carne. E, finalizando, vale ainda destacar as vitrines de marcas famosas na saída de Eleanor do escritório do FBI – ecoando a afirmação do criminoso misantropo de que as pessoas só pensam em ter coisas. Um cinismo contaminado pela misantropia, como se pode observar.
Tenso e coeso do início ao fim, e com personagens magníficos, Sede Assassina merece sim entrar na lista dos melhores thrillers policiais dos últimos anos.
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Ficha técnica:
Sede Assassina | To Catch a Killer / Misanthrope | 119 min | EUA | Direção: Damián Szifron | Roteiro: Damián Szifron, Jonathan Wakeham | Elenco: Shailene Woodley, Ben Mendelsohn, Jovan Adepo, Ralph Ineson, Richard Zeman, Dusan Dukic, Jason Cavalier.
Distribuição: Diamond Films.