Sertânia rompe regras, é delírio sem escapismo.
O preto e branco extremo de Sertânia explode na tela. Resgata aquela paisagem do Nordeste do branco estourado de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha. Com isso, se blenda com a dureza do sertão. No caso deste filme do veterano diretor Geraldo Sarno, agravada pelo ferimento mortal que leva o seu protagonista Antão ao delírio. E a narrativa parte deste estado terminal, para com isso justificar sua não-linearidade, ou melhor, sua fragmentação no contar de sua estória.
O filme acompanha o turbilhão de conexões na mente de Antão, em seus momentos derradeiros. Para isso, suas imagens fogem do padrão. Afinal, o moribundo personagem já perdeu o controle sobre seu racional. Assim, Sertânia recorre à irriquieta câmera na mão, aos planos curtos alternando closes, às imagens sobrepostas, e à subjetividade do olhar que leva as lentes para próximo do chão, a fim de retratar o rastejar do protagonista.
Dirgressões
E o que vemos são digressões. Parte dessas imagens reconstroem os acontecimentos que levaram ao ferimento mortal de Antão. Porém, a narrativa é recortada e não cronológica. Por isso, dividem a linha do tempo com inserções de lembranças de infância, da juventude e de um presente próximo. Da infância, se origina a questão que o atormenta a vida toda, a respeito do paradeiro de seu pai. Da juventude, como foi educado em São Paulo para servir ao exército da República. Por fim, do posterior rompimento desse alistamento para o lado adversário, como jagunço do Capitão Jesuíno.
Durante esse processo desconexo, o delírio de Antão o leva até o mundo dos mortos. Lá, revê a mãe e tenta desvendar o que aconteceu com o seu pai. Em contraponto, em certo momento vemos a câmera girar ao redor do personagem e, assim, revelar a equipe de filmagem de Sertânia.
Esse recurso surpreendente se alinha com a conclusão, que capta cenas atuais do Nordeste, em uma festa regional e numa sucessão de closes de seus habitantes olhando para a câmera. Diante desse contraste, da fantasia à exposição da realidade metalinguística, entendemos que o filme insere o seu enredo como parte integrante da história da região. Em outras palavras, Sertânia não quer o seu tom fantasioso e a sua comunicação sensorial ocultem a realidade da violência e da fome ainda presentes no Nordeste.
___________________________________________
Ficha técnica:
Sertânia (2020) Brasil, 97 min. Direção/Roteiro: Geraldo Sarno. Elenco: Vertin Moura, Julio Adrião, Kecia Prado, Lourinelson Vladmir, Igor de Carvalho, Sara Galvão, Edgard Navarro.
Distribuição: Bretz Film.