É comum nos vermos apegados a certas filmografias. Se quem assiste a muitos filmes por semana tem dificuldade em apontar um diretor preferido – quem realmente consome com profusão sempre tem desapego com esses adjetivos holísticos – é usual, porém, estarmos atrelados a certos nomes. Seja por eventual importância da obra na jornada individual da cinefilia, seja por especial interesse na forma ou no conteúdo que o realizador aborda: não se tem um diretor preferido, mas os que sempre se retorna. John Cassavetes é um deles para mim, e Sombras (Shadows)foi seu filme de estreia.
Contexto Histórico
Como já mencionado em outras das minhas críticas, toda obra é fruto de seu contexto. Porém, em alguns casos (como foi o de Macunaíma, por exemplo) acho fortuito trazermos à tona parte do que de importante que acontecia no cenário do cinema; nesse caso, do cinema internacional.
O período 1945-1960 foi um dos mais prolíficos na produção de ideias sobre a arte cinematográfica. É quando surge na Itália o chamado Neorrealismo, com Rossellini e seu “cinema miticamente moderno” (citando Jacques Aumont), tem-se o nascimento da revista Cahiers du Cinema, a câmera vai (honestamente) à favela pela primeira vez pelas mãos de Nelson Pereira dos Santos no Brasil, Chris Marker inicia seu cinema vanguardista nos Estados Unidos, e a ruína do modelo dos estúdios em Hollywood já começava a tomar forma.
Em 1959, ano de lançamento de Sombras, publica-se o icônico artigo “Sur un art ignore”(Sobre uma arte ignorada) de Michel Mourlet que basicamente muda a história do cinema para sempre.
Além disso, chegam aos cinemas Os Incompreendidos de François Truffaut e Hiroshima Mon Amour de Alain Resnais, importantes para o que se chamaria de Nouvelle Vague. Também na França, Robert Bresson lança O Batedor de carteiras, obra máxima de seu sistema estilístico. Nos Estados Unidos, estreiam Ben-Hur, épico de William Wyler e Anatomia de um Crime de Otto Preminger; Howard Hawks faz sua obra prima do western Onde Começa o Inferno; e Billy Wilder da comédia, Quanto Mais Quente Melhor. Fora do eixo dominante Estados Unidos/Europa tem-se a conclusão da Trilogia de Apu, O Mundo de Apu na Índia e os dois primeiros filmes da série Guerra e Humanidade de Masaki Kobayashi no Japão. Enfim, trata-se de um momento de efervescência do cinema num contexto global.
O cinema independente de John Cassavetes
Nos Estados Unidos, tratam John Cassavetes como o “pai do cinema independente”, tendo um grau de importância tremendo nesse momento supracitado de ebulição cinematográfica.
Trabalhando como ator para conseguir investir em seus projetos, Cassavetes gostava de encenar com amigos, dando aspecto mais pessoal para sua filmografia. Nesse sentido, sua principal parceira foi a atriz Gena Rowlands, que também era sua parceira na vida real, ficando casados até a morte do americano em 1989.
Gravando em locações, com pouco dinheiro, equipe e elenco não profissionais, a ideia de fazer Sombras veio (como diz a lenda) em um exercício de sala de aula. Cassavetes dava aula para aspirantes a atores em Manhattan. Além do diretor, apenas o diretor de fotografia Erich Kollmar tinha experiência com cinema.
A espontaneidade
Talvez o aspecto mais “moderno” do trabalho de Cassavetes seja sua relação com a câmera. Muito mais interessado na encenação e nas atuações, como diria Bazin sobre o Neorrealismo Italiano (que invariavelmente influencia diretamente o cinema do americano): “A câmera está intricada na ação, e não a ação na câmera”.
Por isso é interessante termos feito essa (deveras longa) contextualização, já que no mesmo ano de 1959 temos filmes de mise-en-scènes eminentemente calculadas, nos quais a decupagem/movimento de câmera é a rainha da construção de significado (Preminger e Bresson talvez os casos mais evidentes).
Já em Sombras, por mais que ainda em estado preambular, a câmera parece tentar apreender o que está acontecendo, nunca segura de si mesma, ela por vezes perde um ou outro movimento. Em casos futuros (Uma Mulher Sob Influência), com Cassavetes já tendo aperfeiçoado seu estilo, isso é mais perceptivo que aqui, onde parece ainda estar no começo de seus testes dos limites das convenções estéticas.
Preâmbulo, Prolóquio
Por fim, Sombras não está entre os melhores filmes do diretor – apesar de longe de ser ruim. O discurso antirracista inerente na trama é importante, e bem desenvolvido tendo em vista as condições da produção.
Nesse primeiro filme, penso que a câmera ainda está num processo de adolescência, de amadurecimento, de autoconhecimento. Em Faces (1967) ela se encontraria. Por enquanto são apenas preâmbulos de um estilo cinematográfico, mas prolóquios de um cinema independente.
Texto escrito pelo crítico e universitário de cinema Enrico Mancini, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
Sombras | Shadows | 1958 | 1h21 | EUA | Direção e roteiro: John Cassavetes | Elenco: Ben Carruthers, Lelia Goldoni, Hugh Hurd, Anthony Ray, Dennis Sallas, Tom Reese.