Ao pensarmos em cineastas franceses, é comum evocarmos imediatamente os “jovens turcos” Éric Rohmer, François Truffaut, Claude Chabrol, Jacques Rivette e Jean-Luc Godard ou os canônicos Jean Renoir, Robert Bresson, Jean Cocteau e Agnès Varda. Talvez aos cinéfilos mais cativados, surjam Jean Vigo, Maurice Pialat, Jean Eustache e Jean-Pierre Melville, ou Jacques Demy, o casal Straub–Huillet e Jacques Tati. Entre os vigentes, aparecem Céline Sciamma, Philippe Garrel ou Claire Denis. Enfim, entre tantos nomes que constituem o país mais importante da história da sétima arte, sinto que cada vez mais Henri-Georges Clouzot é deixado para trás, e por isso pretendo passar por alguns de seus principais filmes. E, Sombra do Pavor (Le Corbeau) será o primeiro deles.
Na comuna de Tulle, na França, foram enviadas mais de 100 cartas anônimas expondo os mais obscuros segredos dos habitantes. Isso ocorreu entre 1917 e 1922, e Clouzot adapta essa história para o cinema, sob o título original “Le Corbeau”. Inclusive, é fortuito comentar que no Brasil, além de Sombra do Pavor, o filme também é conhecido como “Cartas Anônimas”, ou até mesmo com sua tradução literal, “O Corvo”.
Continental Films
Henri-Georges Clouzot foi roteirista de Le Dernier des Six (1941), filme de Georges Lacombe (não confundir com o pintor e escultor de mesmo nome) pouco antes de estrear na direção. Se trata de um whodunnit nem arrebatador nem execrável, que provavelmente já teria sido esquecido não fosse o envolvimento do realizador.
Depois do sucesso da película acima, o francês passa a trabalhar em um novo roteiro, que viria a ser seu lançamento na direção de longas, O Assassino Mora no 21 (L’assassin habite… au 21), de 1942. O filme é uma continuação do anterior, também produzido pela Continental Films, produtora cinematográfica francesa controlada pela Alemanha na França ocupada pelos nazistas.
Durante a ocupação alemã, a única organização autorizada a produzir filmes era a Continental Films. É interessante notar que as produções americanas foram banidas no país francófono, e a companhia cinematográfica buscava longas de qualidade e sucesso comercial, pretendendo ocupar o lugar dos filmes dos Estados Unidos – inclusive investindo consideravelmente para atingir seu objetivo.
Isso é relevante do ponto de vista historiográfico, já que podemos perceber um certo direcionamento nas narrativas. Claro que não haveria críticas direcionadas à Alemanha, mas mais do que isso, é possível perceber uma visão de mundo diferente dos filmes posteriores de Clouzot.
Todos que conhecem o cinema do diretor sabem de sua visão pessimista, coisa pouco latente em O Assassino Mora no 21. Apesar de em Sombra do Pavor já ser possível termos uma perspectiva mais próxima da que Henri-Georges Clouzot conservaria no resto de sua filmografia, ainda não o temos em sua plenitude. Ainda sobre isso, é preciso dizer que dois dias depois do lançamento do filme que é foco dessa crítica, a Continental Films demite Clouzot, por Sombra do Pavor ter gerado intrigas tanto com a esquerda quanto com a direita, bem como com a Igreja Católica.
Banido para o resto da vida
Depois da libertação da França, Henri-Georges Clouzot foi julgado em tribunal por ter “colaborado com os nazistas”. Sua condenação foi nunca ir a nenhum set de filmagem nem nunca mais usar uma câmera pelo resto de sua vida. Isso é pertinente para esse texto já que além de receber cartas de apoio de diversos cineastas (Jean Cocteau, René Clair, Marcel Carné), foi apoiado por Jean-Paul Sartre.
Sua sentença viria a ser encurtada para dois anos, e enquanto isso trabalhou com Sartre, que seria importante para a recuperação não apenas do nome do diretor, mas de sua obra. O filósofo francês foi um dos primeiros a defender Sombra do Pavor, e a partir daí o longa se estabeleceu não só como um dos principais filmes de Clouzot, mas também o mais importante filme francês feito durante o período da ocupação.
A direção
Ao dirigir Sombra do Pavor, Clouzot opta pela fluidez. Sua câmera se movimenta em pan, se aproxima, se mexe sempre para absorver melhor a ação – substituindo por algumas vezes a montagem, ao invés de cortar de um plano médio para um plano detalhe, a aproximação (e ocasionalmente o zoom) sustenta a duração, dando mais densidade ao segmento.
Se a movimentação do ator é refletida na movimentação da câmera no cinema de David Fincher, o que é tema de um introdutório, porém interessante, vídeo ensaio que assisti há alguns anos, podemos ver o mesmo aqui – só que mais de meio século antes. Se o dono do canal aponta a importância do ensaio para que aquilo funcionasse no cinema do americano, o mesmo é apontável aqui.
Existe um claro cuidado com a encenação. Clouzot usa desde o clássico walk-the-talk à atenção com os personagens que entram e saem do quadro, que se concentram no campo e no fora de campo, que se observam, se conversam e se desafiam.
A fotografia é escorada por sombras revelando a ambiguidade do roteiro no material sensível da película: o que está claro e o que está escuro, o que é mostrado e o que é oculto, o que é público e o que é privado. Tudo o que viria a ser exposto pelas cartas já está nesta simples e brilhante escolha de mise-en-scène.
As figuras são cortadas por tensão que é muito mais fácil de sentir do que descrever. Fato é que o cinema de Henri-Georges Clouzot é composto de simples escolhas que se intercalam na complexidade de sua totalidade.
A montagem
Entre os pontos positivos da montagem, gosto da forma como Clouzot conserva planos longos, e como em algumas composições parece que o próprio foco dita para onde a atenção deve ir. Ao invés de apelar para o plano fechado, a própria fotografia “monta” o enquadramento – nesse caso acho mais fácil mostrar que descrever:
Repare como o senhor com o cachimbo e óculos (em segundo plano) está mais em foco que o senhor com lenço no bolso (em primeiro plano). A própria composição privilegia o que usa óculos, com os sentados atrás dele na profundidade de campo contornando seu rosto, direcionando nosso olhar. Além disso, a própria iluminação é mais proeminente, com uma backlight (ou hair light, chame como quiser) que o destoa do resto, enquanto o contorna.
Porém, se existe algo que me incomoda no filme, é a montagem. As transições soam um pouco amadoras, dissolvendo de um plano para o outro depois de uma agressão por exemplo, o que acaba por tirar a força da ação exercida.
Por fim, Henri-Georges Clouzot é um excelente nome que vem sendo esquecido pela história. E acredito que parte do trabalho do crítico é justamente se esforçar para que essas injustiças sejam diminuídas. Tratarei de seus dois filmes mais conhecidos em breve.
Texto escrito pelo crítico e universitário de cinema Enrico Mancini, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
Sombra do Pavor | Le corbeau | 1943 | 92 min | França | Direção: Henri-Georges Clouzot | Roteiro: Louis Chavance, Henri-Georges Clouzot | Elenco: Pierre Fresnay, Ginette Leclerc, Micheline Francey, Héléna Manson, Jeanne Fusier-Gir.