Terra Sem Lei (Never Grow Old) é um raro faroeste filmado na Irlanda, país de origem do seu diretor e roteirista Ivan Kavanagh. Em seu sexto longa, o primeiro nesse gênero, Kavanagh faz um tardio western revisionista, ou talvez, uma revisão dos faroestes revisionistas. Não há heróis nessa trama, o protagonista passa a história toda indeciso sobre seus valores, enquanto os vilões prosperam e se tornam cada vez mais perigosos.
A trama se passa na comunidade de Garlow, na Califórnia, em 1849. Liderada pelo reverendo Pike, e com apoio do já idoso xerife Parker, a cidade baniu as bebidas alcoólicas, os jogos de azar e a prostituição. Como reflexo disso, os negócios vão mal para todos, mas pelo menos há paz. Até que chegam ao local três estranhos, atrás de um dos moradores que os traiu. Acabam ficando, e abrem um saloon com álcool, cartas e prostitutas, rompendo com as regras em vigor.
Um herói indeciso
O filme conta essa história pela perspectiva de Patrick Tate (Emile Hirsch), um agente funerário que estava falindo, mas que começa a ganhar dinheiro com a vinda dos três forasteiros. Afinal, agora mais mortes acontecem. Mas sua esposa Audrey Tate (Déborah François), como se fosse a voz de sua consciência, alerta que não é correto lucrar dessa forma, muito menos ele se aproximar dos três bandidos. Ela insiste para que retomem imediatamente o plano de seguirem o caminho rumo às terras a Oeste, mas Patrick fica dividido entre a ganância por mais dinheiro e o apelo de sua esposa.
Com exceção de Audrey Tate, nenhum outro personagem adulto é retratado como uma pessoa do bem. O protagonista Patrick permanece dividido até a parte final, e quando busca a redenção já é tarde demais para evitar uma tragédia. Já o reverendo proclama que todos os homens devem ser tratados como iguais e que nenhum deve precisar procurar por comida ou abrigo. Porém, essa ideia de que todos trabalham por um bem comum parece não valer para a viúva do homem que os forasteiros procuravam. Por isso, ela precisa prostituir a si mesma e a sua filha para sobreviverem, pois a igreja não as ajuda. Por outro lado, o xerife se apoia no lema de cumprimento da lei para cometer odiosas injustiças.
A sujeira na tela
A sujeira que corrói a cidade se reflete na caprichada direção de arte de Marc Ridremont. Lembrando o ambiente de Onde os Homens São Homens (McAbe & Mrs. Miller, 1971), de Robert Altman, há lama por todo o lado. No mesmo sentido, a fotografia, de Piers McGrail, privilegia os cenários internos, e as locações mostram sempre o tempo nublado. A iluminação em várias cenas internas remete a pinturas barrocas, como vimos recentemente em A Bruxa (The Witch, 2015), de Robert Eggers. Aliás, o quarto do reverendo parece cenário de filme de terror. E, esse personagem como ele mesmo prevê no início do filme, provoca o “inferno na Terra” quando ateia fogo no salão, dando sinal verde para que a violência exploda sem limites. Até então, o enervante vilão Dutch Albert (John Cusack, ótimo nesse papel fora de sua persona), acobertava tudo com sua esperteza manipuladora.
O diretor Ivan Kavanagh recorre a uma das marcas icônicas de John Ford para construir a cena de maior suspense de Terra Sem Lei. Em vários momentos do filme, vemos o plano com a câmera dentro da casa olhando para o exterior através da porta. Assim, nos acostumamos com essa imagem como uma rotina íntima da família de Patrick. Por isso, quando um dos bandidos se esgueira nesse lugar para violentar a esposa de Patrick, sentimos o baque de uma invasão de domicílio. O cuidado com que o dono da casa ataca o invasor, sem fazer nenhum barulho para evitar que Audrey e os filhos percebam, é uma sacada muito inteligente, capaz de arrepiar o espectador.
América, terra sem lei
É fácil identificar os simbolismos do filme. Por exemplo, a bandeira dos Estados Unidos estropiada balançando em cima do saloon em chamas, marcando o contraste dessa realidade com o sonho da “América, terra das oportunidades”. Para reforçar essa ideia, os personagens são emigrantes de várias nacionalidades. Patrick é irlandês, Audrey é francesa, e Dutch Albert, claro, holandês. A visão cínica, aliás, vem de um cineasta irlandês – lembrando que John Ford se considerava um irlandês, mas era estadunidense.
Além disso, temos também o sangue que espirra na cruz de Cristo ao fundo da igreja, local onde ocorre o embate final. É o mesmo local onde o reverendo fez seu discurso sobre a comunidade livre da violência. E, o anti-heroismo de Patrick se revela quando ele escolhe sua arma para enfrentar Dutch: ele pega aquela com o maior calibre que existe, pois não sabe atirar e não quer errar seu alvo.
No entanto, Terra Sem Lei cai na armadilha de seguir a moda do momento, nesse caso, em relação ao uso do flash-forward. Parece desnecessário, e ainda prejudicial, iniciar o filme com esse prólogo que mostra Patrick entrando numa igreja, com o som de disparos logo depois. Isso acaba por entregar a mudança de comportamento do protagonista, quando deveríamos ficar em dúvida se ele deixaria de ficar em cima do muro. Afinal, essa é a questão crucial da trama.
Sem heróis, mas com vilões e uma visão cínica dos hipócritas e sem-caráter, Terra Sem Lei se destaca por fugir do lugar comum do faroeste.
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Ficha técnica:
Terra Sem Lei | Never Grow Old | 2019 | 100 min | Irlanda, Bélgica, França, Luxemburgo, Reino Unido | Direção e roteiro: Ivan Kavanagh | Elenco: Emile Hirsch, John Cusack, Déborah François, Molly McCann, Quinn Topper Marcus, Sam Louwyck, Camille Pistone, Danny Webb, Tim Ahern, Blake Berris, Nickel Bösenberg, Sean Gormley, Paul Reid, Antonia Campbell-Hughes, Steve Karier, Anne Coesens, Manon Capelle, Leila Lallali.