The Perfection pretende ser um filme daqueles filmes de suspense repletos de reviravoltas surpreendentes. Possui os ingredientes para conseguir isso, mas sua receita não funciona.
Nessa produção da Miramax, exibida na Netflix, a estória com elementos densos está exageradamente simplificada. Por isso, o roteiro é segmentado em quatro capítulos, além da sequência de abertura.
Antes dos créditos iniciais, conhecemos a protagonista Charlotte, sendo observada pela face endurecida da sua mãe que está morta na cama. Desde o fim de sua adolescência, Charlotte se dedicou exclusivamente a cuidar da enferma. Assim, perdeu a oportunidade de se tornar uma violoncelista de sucesso. No entanto, um corte abrupto que entra no lugar de sua expressão calada indica que pode haver algo escondido nessa personagem.
Então, começa a primeira parte da estória, chamada de “Missão”. Ela se passa em Shangai, onde Charlotte reencontra seu antigo professor de violoncelo Anton para participar de um jurado que dará uma bolsa à jovem estudante chinesa que vencer o concurso. A outra jurada é Lizzie, uma aluna de Anton cinco anos mais nova que Charlotte e que virou uma musicista de sucesso. Sensual, Lizzie seduz Charlotte, numa bem construída sequência com cenas paralelas do dueto que elas tocam com imagens delas se beijando, dançando juntas e acabando na cama.
Após dormirem juntas no quarto de hotel de Lizzie, entra a segunda parte, “Desvio”. As duas embarcam para uma viagem de ônibus pelo interior de Shangai juntas. Porém, Lizzie começa a passar muito mal, vomita, tem diarreia, e as duas acabam expulsas do ônibus. Isoladas no campo deserto, uma atitude desesperada leva a uma tragédia que impedirá Lizzie de seguir sua carreira musical.
Spoilers adiante
Porém, o espectador descobre que tudo era um plano de Charlotte, através do interessante recurso de retroceder o filme em velocidade acelerada e reiniciar a estória do ponto de vista desta. Aparentemente, Charlotte agiu motivada pelo ciúme.
Em seguida, a terceira parte se chama “Lar” e acontece três semanas depois, em Boston, na escola de Anton. Descobrimos que o intuito de Charlotte de mutilar Lizzie era para protegê-la do professor, que abusava de suas alunas como punição quando elas erravam, alegando sua busca pela perfeição (o título do filme). Contudo, o filme deixa escapar a oportunidade de aprofundar as duas protagonistas que sofreram o abuso sexual na adolescência.
Aliás, esse aprofundamento seria essencial para justificar a explosiva vingança das duas em “Dueto”, a quarta e última parte. Há uma violência exagerada, quase caricata, na retaliação das garotas sobre o professor e seus aliados.
Na verdade, The Perfection pode até divertir, possui ritmo acelerado e recursos modernos diferenciados. Além do retrocesso acelerado, duas vezes empregado para mostrar o que aconteceu de fato, há outras interessantes escolhas formais. Por exemplo, o soco que deixa a tela vermelha e o porão da escola com um pequeno palco onde as alunas que performam ficam à frente de uma luz que forma uma aureola nelas – uma bela referência à inocência angelical das meninas. Além disso, o diretor Richard Shepard até insere uma cena característica de Quentin Tarantino: a câmera filmando de dentro do porta malas.
Diversão rasa
No entanto, Shepard, diretor prolífico em trabalhos para a televisão, não consegue aprofundar os traumas que o abuso sexual provocou nelas. Dessa forma, tudo fica banalizado, e, por isso, abusa de imagens escatológicas, como vômito com insetos, insetos dentro do braço, e membros decepados. Compare este filme com a abordagem mais humanista do assunto no filme francês Um Amor Impossível, dirigido por Catherine Corsini. E perceba que a produção francesa choca mais que The Perfection.
Por outro lado, o roteiro também não aproveita esses elementos para construir personagens menos rasos, e abre ainda questionamentos sobre o nexo causal entre os abusos e a fuga permitida pelo enfarto sofrido pela mãe. A estória poderia sim atingir um tom mais sinistro se esse enfarto tivesse sido provocado pela própria Charlotte como forma de escapar de Anton. Ademais, a narrativa poderia também gerar suspense se o espectador fosse cúmplice do plano de Charlotte para levar à auto amputação de Lizzie. Afinal, pense como o filme envolveria mais se acompanhássemos o desenrolar do plano, que dependia muito de conferir se Lizzie realmente se comportaria daquela forma quando dopada.
Além disso, é difícil não imaginar que, se Lizzie também era vítima dos abusos de Anton, Charlotte poderia ter conseguido seu apoio para enfrentá-lo. Assim, não seria necessário arriscar um esquema tão extremo.
Provavelmente, os produtores escolheram a atriz Allison Williams porque ela esteve em Corra! (2017). Porém, isso nem de longe consegue aproximar o suspense morno de The Perfection com aquele intenso do filme de Jordan Peele.
Em suma, The Perfection serve só como passatempo.
Ficha técnica:
The Perfection (The Perfection, 2019) EUA. 90 min. Dir: Richard Shepard. Rot: Eric C. Charmelo, Richard Shepard, Nicole Snyder. Elenco: Allison Williams, Logan Browning, Steven Weber, Christina Jastrzembska, Glynis Davies, Molly Grace, Milah Thompson.