Em uma filmografia repleta de obras-primas, muitos consideram “Touro Indomável” o melhor de todos os trabalhos de Martin Scorsese. Provavelmente, também seja o primeiro da lista entre os melhores filmes sobre boxe, curiosamente dirigido por uma pessoa que não entendia nada de esportes. E que só aceitou fazer esse filme devido à insistência de Robert De Niro.
O filme conta a estória do lutador Jake La Motta (Robert De Niro), o “touro indomável” do título. Ele vem do bairro simples do Bronx, em Nova York, e se torna famoso por sua resistência aos golpes sofridos no ringue. Porém, La Motta carrega a violência do boxe para sua vida pessoal, fazendo sofrer as duas pessoas que o amam, seu irmão Joey (Joe Pesci) e sua segunda esposa Vickie (Cathy Moriarty). Depois, quase perde sua carreira ao aceitar ser derrotado propositalmente em uma luta. Mas, retorna triunfalmente, e chega a ganhar o título de campeão mundial do peso médio.
Contudo, fica paranoico de ciúmes de sua jovem e bela esposa, desconfiando até do seu irmão, com quem rompeu relações. Joey participa ativamente da sua carreira, como seu empresário. Por isso, o rompimento acarreta na decadência do lutador, que se aposenta e abre uma boate, onde atua como crooner. Por fim, acaba preso por permitir menores de idade frequentarem o local.
Beleza em preto e branco
Os créditos iniciais são belíssimos. Eles mostram Jake se aquecendo no ringue em câmera lenta, como se estivesse dançando, ao som do lindo tema central composto por Mascagni. Dessa forma, antecipa o tom triste e trágico do filme que assistiremos. Filmado em preto e branco, “Touro Indomável” se mantém fiel a quem assistiu as imagens das lutas de La Motta pela televisão nos anos 1940.
A ausência de cores também atenua a violência, ao evitar o vermelho do sangue que jorra aos litros nas lutas. Dessa forma, o close na corda pingando sangue e a esponja ensanguentada ganham até um tom poético. As únicas cenas em cores são aquelas dos home movies que o lutador guarda e que ilustram a colagem que passa os eventos entre 1944 e 1947. Por exemplo, o casamento de Jake e de Joey e o nascimento dos filhos deles, tudo acontecendo simultaneamente na vida dos dois irmãos.
Scorsese esbanja criatividade para filmar as lutas. Invariavelmente, leva a câmera para o ringue, e coloca o espectador dentro da luta. O diretor não permite tomadas repetidas, e ainda filma cada luta de um jeito diferente. Assim, cada uma tem seu estilo distinto, conforme exige a narrativa. Na luta em que Jake vence o eterno oponente Sugar Ray, a mise-en-scène é aberta e clara. Já quando ele perde para o mesmo adversário, a cena está enfumaçada e há muito desfoque. Além disso, algumas lutas são ilustradas com fotos apenas.
A religião
O diretor deixa fluir também o seu lado religioso, aproveitando a mesma origem compartilhada com o personagem principal. Por isso, na casa do pai de Jake, para onde ele leva Vickie pela primeira vez, há quadros com imagens sacras nas paredes. Inclusive, em uma tomada icônica, onde se vê Vickie no banheiro, através da porta, e há um quadro desse em cada uma das duas paredes ao lado dessa porta, que, por sinal, está iluminada. Depois, na luta final, Jake está derrotado, e no corner, o seu médico passa pomada em seu rosto como se estivesse lhe dando a extrema unção.
Nessa sequência, há outro destaque. Vemos Jake no ringue, de pé, mesmo depois de ter apanhado muito. E, em uma cena em câmera lenta totalmente estilizada, Sugar Ray se prepara para dar os golpes finais, com um sentido de tempo na tela diferente do real.
A depressão de Jake atinge o máximo em duas cenas inesquecíveis. Depois de entregar a luta, ele chora arrependido no vestiário, compulsivamente. À noite, senta-se na sala de seu apartamento e fica parado assistindo a televisão fora de sintonia. Outra cena de angústia, esta mais desesperada, encontra Jake na prisão. Com iluminação recortada em dois espaços quadrados, certamente influenciada pelo expressionismo alemão, o agora ex-lutador está sentado em um desses quadrados. Então, se levanta para dar cabeçadas na parede e esmurrá-la, no outro pequeno quadrado iluminado.
Robert De Niro
O desespero de Jake é contagiante. De fato, não é possível ficar impassível perante a interpretação de Robert De Niro, que realmente sensibiliza o espectador mesmo com um personagem não muito simpático. A identificação com ele é mais forte que qualquer julgamento. De Niro ainda se preparou tanto que as cenas de lutas explodem na tela com autenticidade. Aliás, a sua dedicação ainda o fez engordar quase 30 kg para viver Jake aposentado. Por isso, não é de surpreender que ele tenha ganhado o Oscar de melhor ator pelo filme.
Outro Oscar que “Touro Indomável” levou foi um reconhecimento ao maravilhoso trabalho de edição do filme. A responsável é a recorrente parceira de Scorsese, Thelma Schoonmaker, uma das principais responsáveis por fazer as cenas de luta funcionarem tão bem nas telas. Em algumas sequências, a quantidade de cortes é impressionante. Mas, mais que isso, o ponto onde Schoonmaker começa e termina, e ainda insere, os cortes é que torna o resultado genial.
Por tudo isso, “Touro Indomável” merece figurar em várias listas de melhores filmes. Seja da carreira de Scorsese, de De Niro, ou de Schoonmaker, ou dos anos 1980, ou da Nova Hollywood (que muitos consideram que termina com esse filme) ou de filmes de boxe, ou, resumindo, de todos os tempos.
Ficha técnica:
Touro Indomável (Raging Bull, 1980) EUA, 129 min. Dir: Martin Scorsese. Rot: Paul Schrader e Mardik Martin. Elenco: Robert De Niro, Cathy Moriarty, Joe Pesci, Frank Vincent, Nicholas Colasanto, Theresa Saldana, Mario Gallo, Frank Adonis, Joseph Bono, Frank Topham, Lori Anne Flax, Charles Scorsese, Rita Bennett, Mary Albee.