Hitchcock sobrevive ao desafio de “Um Barco e Nove Destinos”
“Um Barco e Nove Destinos” significou para o diretor Alfred Hitchcock um enorme desafio técnico, pois toda sua ação se passa a bordo de um bote salva-vidas à deriva no oceano. Como realizar um filme interessante com tamanha restrição física? Produzido nos primeiros anos da fase norte-americana de Hitchcock, esse estímulo rendeu uma obra instigante, porém com algumas falhas que enfraquecem o espetáculo.
O início é típico do diretor. Sem usar palavras, ele insere o espectador na história. Durante os letreiros, a câmera se fixa numa chaminé, cuja fumaça começa a escurecer e sua estrutura se inclinar, para ao final desabar e revelar que um barco naufragou. Então, vemos vários objetos flutuando no mar, oriundos da embarcação que afundou. Logo, uma caixa de primeiros socorros revela que o barco era britânico. Por fim, um corpo também aparece boiando, com um uniforme do submarino alemão U-78, donde concluímos o que gerou o desastre.
E, então, de forma inesperada, avistamos uma mulher bem vestida em um bote salva-vidas. É a atriz Tallulah Bankhead, escolhida por possuir uma aura blasé, e ser inclusive tecnicamente superior ao restante do elenco. Em close, percebemos que ela está preocupada com suas meias que se rasgaram. Com uma máquina portátil, ela avista um sobrevivente nadando em sua direção, e o filma ao invés de socorrê-lo. Temos aí, nessa rápida sequência, a apresentação do ambiente e de uma das protagonistas do filme, um exemplar exercício da genialidade de Hitchcock.
Nove passageiros
Outros personagens se juntarão a esses dois, completando os nove passageiros do título brasileiro. Cada um com características bem definidas, representando um microcosmo da sociedade da época, como John Ford fez em “No Tempo das Diligências” (Stagecoach, 1939). Assim, Connie Porter (Tallulah Bankhead) é uma conhecida jornalista. John Kovac (John Hodiak), um operário. Charles J. Rittenhouse (Henry Hull), um empresário bem sucedido. Joe Spencer (Canada Lee), um negro. Alice (Mary Anderson) uma enfermeira. E assim por diante.
Porém, quem entra por último e causa um grande dilema no grupo é Will (Walter Slezak), o capitão do submarino alemão que bombardeou o barco britânico. Ele deve ser acolhido ou jogado para fora do bote? Ele é confiável? Esse questionamento permite a Hitchcock exercitar outra característica de seus filmes, que é colocar o espectador à frente dos personagens. Em uma pista sutil, um close-up em Will mostra a sombra da vela do bote invadindo seu rosto, revelando seu lado obscuro. Em outra, mais objetiva, o espectador vê que ele esconde uma bússola em sua mão, fato que ele ocultou dos outros.
Hitchcock utiliza os efeitos da natureza para enfatizar o que acontece na trama. Nesse sentido, em uma das cenas mais dramáticas, a da amputação, ventos e ondas surgem com ferocidade, transformando a situação em um vendaval. Posteriormente, após uma forte tempestade, as relações entre os personagens se transformam. O alemão Will é filmado com a câmera em plongée, revelando que agora ele está no comando. Enquanto isso, os demais se posicionam de acordo com suas afinidades, mostrando até os interesses românticos antes escondidos.
Polêmica política
Por outro lado, a brincadeira usual do diretor em aparecer como figurante de seus próprios filmes demandou aqui muita criatividade de sua parte. Inspirado por um regime real que reduziu seu peso, Hitchcock aparece em uma foto de um anúncio de produto de emagrecimento lido por um dos personagens no barco.
O filme foi realizado quando a Segunda Guerra Mundial ainda estava acontecendo. Portanto, o seu tema era bem ousado, o que causou muita crítica negativa, pois os radicais nacionalistas estadunidenses o consideraram a favor do nazismo. Um absurdo, pois o personagem alemão se torna poderoso na trama usando artifícios condenáveis.
Filme catástrofe
Já os efeitos especiais conseguiram resolver com competência a simulação em estúdio de um barco à deriva em alto-mar. De fato, as projeções de fundo não soam artificiais, e o uso de muita água de verdade ajudou a dar realismo nas cenas. Contudo, um efeito que não funciona é quando um navio alemão parte em direção ao bote, pois claramente se identifica o uso de miniaturas. Essa sequência, na verdade, não funciona técnica nem narrativamente, porque o final espetacular soa como coincidência forçada para que o filme tenha um final feliz.
Da mesma forma, pode-se apontar, também, um erro por parte do mestre Hitchcock, quando optou por sair do bote salva-vidas para mostrar a isca atraindo um peixe, no momento em que os náufragos tentar pescar. Inserido na parte final do filme, essa tomada quebra o efeito claustrofóbico construído durante todo o filme por manter a câmera sempre na posição de dentro do bote. Na verdade, ao filmar de dentro da água para mostrar o peixe fisgando a isca, o diretor buscou criar ansiedade nas ações simultâneas da cena. No entanto, com essa opção destruiu o drama experimentado pelo espectador, que até então se sentia como se estivesse também no bote.
Enfim, esses deslizes finais acabam estragando o que poderia ser uma obra maior de Hitchcock. Mesmo assim, “Um Barco e Nove Destinos” é um grande filme, e se tornou paradigma para o cinema catástrofe, que repetiu a fórmula de colocar vários personagens em conflito em situações de desespero.
Ficha técnica:
Um Barco e Nove Destinos (Lifeboat, 1944) 97 min. Dir: Alfred Hithcock. Rot: Jo Swerling. Com Tallulah Bankhead, John Hodiak, Walter Slezak, William Bendix, Mary Anderson, Henry Hull, Heather Angel, Hume Cronyn, Canada Lee, William Yetter Jr.
Assista: Hitchcok/Truffaut entrevista sobre “Um Barco e Nove Destinos”
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