Alguns espertinhos aproveitaram que o livro “Winnie-the-Pooh” (1926), de A. A. Milne, entrou em domínio público nos Estados Unidos para filmar a toque de caixa (em oito dias*), uma inusitada versão slasher do personagem. Assim, surgiu Ursinho Pooh: Sangue e Mel, que chega às telas dos cinemas brasileiros em 10 de agosto de 2023. Já é uma prova de que a empreitada de risco deu certo, pois muitos outros filmes de melhor qualidade não conseguem lançamento por aqui.
Mas esperteza comercial não significa talento nas artes. Ainda mais quando o diretor e roteirista é Rhys Frake-Waterfield, um inglês que fez antes três longas com avaliação baixíssima*, todos dentro do gênero ação e terror. Quando a pressa dita as regras, então, não tem como sair um bom resultado. Pelo contrário, Ursinho Pooh: Sangue e Mel chega até a ser escandaloso de tão ruim.
Explicando a origem (duas vezes)
Dá para notar que tentaram dar um tapa para melhorar uma talvez primeira versão (mal) acabada do filme. Deve ter vindo daí a sugestão de iniciar o longa com um prólogo no estilo de estorinha infantil. Assim, uma narração com voz calma explica a origem da trama, enquanto na tela estão ilustrações em preto e branco. Conforme o relato, o menino Christopher Robin encontrou um grupo de seres zooantropomórficos na floresta perto de sua casa. Durante sua infância, Christopher cuidou deles, mas quando virou adulto, ele foi embora para estudar na faculdade. Os amigos abandonados, então, sacrificaram um dos menores do grupo para se alimentar. E deram início a uma constante caça a pessoas durante os anos seguintes.
Um dos problemas é que a explicação da abertura se repete quando Christopher, adulto, retorna ao Bosque dos 100 Acres, na Floresta de Ashdown (Sussex, Inglaterra). O diálogo com a sua namorada conta, de novo, que ele tinha esses animais amigos na infância. E agora quer reencontrá-los. Mas, claro que não é uma boa ideia. A moça logo vira alimento e o rapaz alvo de torturas vingativas. Sem nenhuma explicação (mas isso é apenas um dos inúmeros furos do roteiro), apenas o Ursinho Pool e o Leitão estão ali como algozes. Os demais do grupo sumiram, por algum motivo relacionado à produção do filme. Talvez restrição orçamentária, talvez problemas de direitos autorais.
Um slasher qualquer
No restante do enredo, Christopher fica de escanteio, retornando somente na parte final. As principais vítimas, na verdade, são cinco moças (seis, contando a atrasadinha que dura pouco). Elas vão para uma casa isolada (nem tanto, pois dá para ver outra casa vizinha quando chegam ao local), pois uma delas quer fugir da paranoia que sofre na cidade grande por causa de um stalker. Então, a trama se desenrola como num filme de slasher qualquer.
Portanto, gera um questionamento inquietante: para que esperar pela liberação dos direitos autorais de um personagem icônico se não for para explorar suas características? Definitivamente, a criatividade esteve longe de Rhys Frake-Waterfield, mais preocupado em ter um produto com o nome Pooh para colocar à venda o mais rápido possível.
Direção e roteiro
A direção é tão incompetente que não consegue nem replicar os clichês do gênero slasher. Com uma escolha errada da trilha sonora, o tom parece muito mais de filme de ação (por causa da música empolgante ao fundo). Assim, nunca cria o tom sombrio que a história pede. Mal montado, muitas cenas são difíceis de entender, ainda mais com uma fotografia absurdamente escura que não deixa enxergar o que se passa na tela.
O roteiro, da mesma forma, é sofrível. Por umas quatro ou cinco vezes, algum personagem pergunta se tal ou tal pessoa gritou, entre outras frases tolas que até provocam gargalhadas no público. Tudo isso adicionando mais lenha à constatação da falta de imaginação dos criadores do filme. Além disso, para quem se irrita com personagens tomando as decisões erradas em filmes de terror, Ursinho Pooh: Sangue e Mel é um tormento. Muitas vítimas aqui poderiam ter escapado se tivessem agido com um mínimo de bom senso. Certo, isso faz parte dos cânones do gênero, mas não pode ser nessa dose exagerada.
Por fim, e talvez acima de tudo, o que joga a pá de cal no filme são os efeitos especiais sem nenhuma qualidade. Por exemplo, o globo ocular de tamanho desproporcional que já pulou fora do lugar enquanto a vítima tem sua cabeça atropelada por um carro. Mas, o pior de tudo é a caracterização dos dois serial killers da vez. Tanto o Ursinho Pool como o Leitão não passam de homens vestindo roupas normais e uma máscara de urso e porco comprada em alguma loja de fantasias. Tais máscaras, rígidas, nem sequer possuem movimentos na boca, o que o esperto roteiro contorna tirando-lhes a habilidade de falar. Porém, voltamos a repetir: somente esperteza não resulta num bom filme.
* segundo o IMDb.
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Sobre o filme
O famoso personagem infantil Ursinho Pooh, criado por A. A. Milne, entrou em domínio público no ano passado. Dessa forma, surgiu essa primeira adaptação dele, inusitadamente dentro do gênero terror. Na trama, o ursinho se revolta porque seu amigo Christopher o abandona para ir para a faculdade. Então, Pooh se une ao porquinho Piglet para matar qualquer pessoa que se aproxime do Bosque dos Cem Acres.
O diretor é o inglês Rhys Frake-Waterfield, especialista em filmes de terror. Ele conta, em entrevista, que a ideia aqui era fazer um filme que contrastasse com a concepção mais comum, de Pooh e seus amigos como animais divertidos e fofinhos.
“Quando perguntávamos às pessoas se queriam ver um filme de terror com o Pooh, nove entre dez diziam que sim. Assim, imaginamos que havia um público para esse tema. Depois encontrei uma máscara de um urso, na internet, e ela era assustadora, e assim fizemos a roupa do personagem em torno dela”, explica.
O principal tema do filme é o abandono. Quando Pooh e seus amigos são deixados por Christopher, sem ter ninguém para cuidar deles, acabam enlouquecendo e devorando o burrinho Ió. Depois, com sede de sangue, atacam qualquer um que se aproxime.
As primeiras imagens do filme viralizaram na internet. “Ao viralizar e todos ficaram sabendo, meu e-mail se dividiu entre dois tipos de pessoas. Metade adorou e me disse que era a melhor coisa do mundo. Eles estavam obcecados com isso, e alguns estavam fazendo cosplay dos personagens. Mas a outra metade odiava e me acusava de destruir muitas memórias da infância”, diverte-se Frake-Waterfield.
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Ficha técnica:
Ursinho Pooh: Sangue e Mel | Winnie-the-Pooh: Blood and Honey | 2023 | 84 min | Reino Unido | Direção e roteiro: Rhys Frake-Waterfield | Elenco: Nikolai Leon, Maria Taylor, Craig David Dowsett, Chris Cordell, Natasha Rose Mills, Amber Doig-Thorne, Danielle Ronald, Natasha Tosini, Paula Coiz, May Kelly, Danielle Scott.
Distribuição: Califórnia Filmes
Trailer aqui.
fonte (sobre o filme): divulgação | fotos: divulgação