A Colmeia, segundo longa do cineasta gaúcho Gilson Vargas, é um suspense psicológico que traz um recorte sombrio sobre a colonização de imigrantes alemães no sul do Brasil. Ao contrário do ensolarado O Quatrilho (1995), sobre colonos italianos na região, o retrato aqui se passa num momento posterior, nos anos 1940, quando a Segunda Guerra Mundial já lançava sua influência nefasta sobre o caráter do ser humano.
O impacto direto está na proibição do uso do idioma alemão. Logo, isso leva ao isolamento dos imigrantes em suas moradias no meio da mata. Como o grupo que protagoniza o filme, formado pelo casal Bertha e Werner, os adultos Kasper, Uli, Lila e os gêmeos adolescentes Christoffer e Mayla, além da empregada Erika. A sobrevivência depende de trabalho árduo nas terras, mas Mayla almeja partir para um destino melhor longe dali. A chave para seu sonho é Christoffer, que tem uma contestada oportunidade de frequentar a escola. No entanto, ele prefere evitar o bullying dos colegas e gastar o tempo pelas matas, onde encontra uma índia e sua filha, a quem leva comida todos os dias.
Mas o xenofobismo contra os imigrantes alemães ultrapassa os limites da escola, e alcança o território do grupo de Werner. Invasores picham “Porcos” na parede do galpão, e a polícia investiga um caso de furto de um novilho. A trama toca, também, na agressão aos “bugres”, os nativos que os moradores da região chamam de canibais.
Longe do clássico
A abordagem de Gilson Vargas foge do cinema clássico. Emprega longuíssimos planos fixos, dentro dos quais os personagens se mexem, e não a câmera. Numa cena marcante, por exemplo, o plano geral da casa demora a mostrar a garota Mayla saindo pela porta até sair do quadro. Então, um grito abalador se ouve do extracampo, e os demais personagens saem da casa. O último é o gêmeo Christoffer, e só então há um corte que leva a outra tomada que revela o que aconteceu. Mesmo quando monta a cena com mais cortes, como quando o grupo precisa raspar o cabelo por conta de piolhos, Vargas impõe um ritmo sob cadência diferenciada.
O diretor parece oferecer tempo ao espectador para que reflita sobre as situações. De fato, esse processo é até necessário, pois o roteiro não entrega a narrativa de bandeja. Nem poderia, pois a intenção é mesmo permitir interpretações. Por isso, os diálogos são raros, às vezes incompreensíveis, perguntas ficam sem resposta. A empregada nunca fala nada, só olha tudo com ar de reprovação. O silêncio prevalece no relacionamento conflituoso dentro desse grupo.
Interpretações
Nesse sentido, o desfecho pode levar a interpretações sinistras. O novilho roubado do vizinho serviu de jantar após o sumiço de Mayla, mas a refeição, com a rara presença de carne nos pratos, é interrompida pela discussão entre Werner e Christoffer. No outro dia, o rapaz descobre o novilho na caverna onde estavam a índia com a filha, que sumiram. Se não foi a carne do bezerro que eles comeram, foi a de quem? Simbolicamente, fica a ideia de que quem pratica o canibalismo é o branco, e não o índio. E, os nativos foram os sacrificados ao longo da história do Brasil.
Além disso, é notório que, enquanto o único homem sobrevivente não tem forças e permanece boiando no rio, as mulheres continuam o trabalho na roça. Elas, enfim, vão construir o futuro melhor que motivou esses imigrantes viajarem até o nosso país?
Aspectos técnicos
Quanto ao aspecto técnico, os enquadramentos são sublimes, colocando todos os elementos (principalmente os personagens) milimetricamente bem posicionados para comunicar o que a cena pede. A fotografia, predominantemente escura, procura reproduzir a sensação de uma época sem energia elétrica. Por outro lado, o som, e a música, estão um tom acima, e provocam jump scares forçados; por exemplo, no despertar de um pesadelo ou no grito de Mayla, acompanhados do estrondo de um trovão.
O próprio diretor Gilson Vargas explica o título A Colmeia: “A colmeia que do lado de fora aparenta tranquilidade, mas que ao ser violada torna-se agitada e perigosa”. Para as filmagens, Vargas levou a produção para quatro cidades do Rio Grande do Sul: Maratá, Pareci Novo, Harmonia e Bom Princípio.
A Colmeia teve sua estreia mundial na Estônia, no Black Nights International Film Festival. Venceu o prêmio de Melhor Longa Estrangeiro do Festival Internacional de Zaragoza e cinco Kikitos na mostra gaúcha do 49º Festival de Cinema de Gramado (direção, ator, fotografia, som e arte).
É um filme que constantemente ousa provocar o espectador, tanto no seu tema como na sua forma.
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Ficha técnica:
A Colmeia | 2019 | 1h40 | Brasil | Direção: Gilson Vargas | Roteiro: Diones Camargo, Gilson Vargas, Matheus Borges | Elenco: Andressa Matos, Janaina Pelizzon, João Pedro Prates, Martina Fröhlich, Rafael Franskowiak, Renata de Lélis, Samuel Reginatto, Thais Petzhold.
Distribuição: Lança Filmes.
Trailer: