A conhecida história do avião que levava um time de rúgbi uruguaio para o Chile e caiu na Cordilheira dos Andes, em outubro de 1972, já rendeu o filme Sobreviventes dos Andes (Supervivientes de los Andes, 1976), que causou furor na época de seu lançamento por conta do incidente do canibalismo, única solução para as vítimas não morrerem de fome. Este A Sociedade da Neve é uma versão repaginada, baseada em outro livro, de Pablo Vierci, lançado em 2008.
O impacto do ato extremo, nesse novo filme, é menor. Talvez porque a produção de 1976 foi lançada apenas quatro anos após o acontecimento. Ou talvez o público de hoje já esteja acostumado a histórias, verídicas ou não, bem mais chocantes. Mas o principal fator desse menor impacto reside na incapacidade do diretor J.A. Bayona em tornar isso impactante. O evento, na tela, ganha uma longa discussão moral, porém, o ato em si se intimida atrás de elipses (não mostra a carne sendo cortada) ou de atenuantes (os pedaços são pequenos e não remetem a pedaços de humanos). Ponto a favor para o bom gosto, claro, mas outros recursos criativos poderiam alinhar sutileza e impacto (no uso do som e da trilha musical, por exemplo).
As falhas de Bayona
J.A. Bayona comete algumas outras falhas. Por exemplo, quando alguns sobreviventes começam a escalar uma montanha e olham para trás e percebem que os destroços do avião não são visíveis de cima. Porém, o contraplano mostra o contrário, que dá para vê-los, ainda que pequenos. Em outro momento, após ficarem quatro dias soterrados pela neve, algumas vítimas conseguem sair e comemoram ao verem o tempo limpo, com música triunfante. Até certo ponto, faz sentido, mas soa exagerado, porque eles todos ainda estão no mesmo lugar, com pouca esperança de resgate. Para funcionar, o filme tinha que ter exacerbado o sofrimento deles sob a neve, o que Bayona não faz com a intensidade adequada.
Um dos pontos que mais prejudicam a dramaticidade do filme é a dificuldade em individualizar os personagens. Essa dificuldade resulta já do que realmente aconteceu, pois era um time de rúgbi, portanto quase todos os passageiros eram masculinos e jovens. Há um esforço em humanizar o grupo, revelando acontecimentos anteriores ao embarque no voo fatídico. Mas não é suficiente para distinguirmos claramente um do outro. A ausência de rostos conhecidos no elenco prejudica ainda mais essa diferenciação. O único que se destaca é Numa, que faz a narração em off, inclusive entrando no reino do fantástico na parte final – talvez o maior destaque criativo da produção.
A sua longa duração, aliás, poderia refletir um dos maiores sofrimentos dos sobreviventes: o tédio. Porém, o filme lança ação atrás de ação, deixando o ritmo ágil, como se assim agradasse ao público.
E Bayona parecia o nome certo para dirigir essa história. Afinal, ele revelou ter grande talento para o gênero catástrofe, quando realizou O Impossível (Lo Imposible, 2012), e aqui poderia repetir a dose. Além disso, tem outros bons filmes no currículo, principalmente, O Orfanato (El Orfanato, 2007). Mas, desta vez, não estava tão inspirado. Ou, o que não é improvável, a produtora Netflix limitou sua liberdade criativa para agradar ao público.
Produção grandiosa
Por outro lado, a Netflix injetou dinheiro suficiente para que os efeitos práticos e visuais ficassem deslumbrantes. Tudo isso parece muito realista, e não é fácil afirmar o que foi feito em locação e o que resulta de computação gráfica. Enfim, é um material adequado para a empresa de streaming, que privilegia investimentos em produções que renderão audiência (visualizações). O assunto despertará interesse, com certeza, e logo se tornará o número um no ranking de filmes mais vistos em sua semana de lançamento.
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Ficha técnica:
A Sociedade da Neve | La Sociedad de la Nieve | 2023 | 144 min | Espanha, EUA, Uruguai, Chile | Direção: J.A. Bayona | Roteiro: J.A. Bayona, Nicolás Casariego, Jaime Marques, Bernat Vilaplana | Elenco: Enzo Vogrincic, Simon Hempe, Esteban Bigliardi, Rafael Federman, Matías Recalt.
Distribuição: O2 Play, Netflix.
Assista ao trailer aqui.