“A Tortura do Silêncio”: Sem o humor negro de Hitchcock
“A Tortura do Silêncio” é um dos poucos filmes de Alfred Hitchcock que não conseguem engajar o espectador. O seu tema convence somente os religiosos mais fanáticos, particularmente os católicos, e o seu clima soa sério demais, sem o delicioso humor negro do diretor.
A única brincadeira presente em “A Tortura do Silêncio” está na sequência inicial. Nela, a câmera chega a uma cidade portuária do Canadá como se estivesse dentro de um barco, e, nas ruas, placas de sinalização em forma de seta com a palavra “direction” (mão única em inglês, mas também faz alusão à direção cinematográfica, já que ainda estamos nos créditos iniciais) nos conduzem paulatinamente até o local onde se encontra um corpo recentemente morto. Então, o assassino desce a calçada sorrateiramente, culminando em um enquadramento no qual sua sombra assume proporções gigantescas. Assim, esse recurso expressionista evidencia que essa pessoa foi tomada pelo mal.
A trama
O personagem é Otto Keller (O.E. Hasse), um imigrante alemão, o que justifica as primeiras tomadas da chegada “do mal” na cidade canadense pelo mar. É nesta sequência inicial que avistamos a figuração de Alfred Hitchcock, caminhando no topo de uma escadaria. Daí para a frente o filme se torna sério – demais.
Otto trabalha na igreja do padre Michael Logan (Montgomery Clift), que o acolheu junto com a esposa quando chegaram da Alemanha. Na noite do crime, Otto confessa formalmente seu assassinato ao padre, na certeza de que seu segredo não será revelado devido à inviolabilidade deste ato conforme as regras da igreja católica. Há ainda um detalhe que torna a confidência ainda mais sacrificante para o padre, pois a vítima chantageava Ruth (Anne Baxter), uma ex-namorada do padre, alegando uma noite de infidelidade da moça com o sacristão depois de casada com outro homem. O perigo que a vítima significava para os dois amantes poderia ser o motivo do assassinato, portanto Logan passa a ser um dos suspeitos. Mesmo assim, ele prefere ser preso injustamente do que desrespeitar o segredo da confissão.
O roteiro se baseia em uma peça teatral francesa do início do século 20, e na época do filme essa trama soou demasiadamente frágil para o público, salvo para os católicos muito tradicionalistas. Nos dias atuais, então, parece ainda mais difícil de engolir que um padre se deixaria arriscar ser preso para manter intacto o segredo do confessionário. Perto do final, o padre corre o risco de ser linchado pela população, mas ainda assim mantém sua retidão.
Hitchcock
Hitchcock, que teve uma formação católica rigorosa quando criança, conhece esse ambiente religioso, e enfatiza a opressão dos seus dogmas espalhando em várias cenas a presença de uma cruz ou até mesmo de Jesus carregando uma cruz com contraponto ao caminhar do padre. No julgamento, quando ele se recusa a dizer a quem pertence a batina ensanguentada que a polícia encontrou, há um crucifixo em posição superior à cabeça de Logan. Além disso, o padre está constantemente caminhando em linha reta, simbolizando que ele não se deixará desviar de seus votos, e que prefere se movimentar do que parar para pensar muito sobre o assunto.
Aliás, em matéria de narrativa visual, Hitchcock insere em “A Tortura do Silêncio” boas doses de sua genialidade. No café da manhã entre os padres, no dia seguinte ao crime, a Sra. Keller (Dolly Haas), esposa de Otto e que está ciente do assassinato, serve a todos de forma automática. Isso porque suas atenções se concentram em imaginar como Logan reagirá com a informação que obteve no confessionário. E percebemos isso principalmente quando a câmera contorna a nuca do padre, como sendo a visão da mulher. Em outra bela cena, o inspetor Larrue (Karl Malden) não está interessado no que seu companheiro lhe conta, mas sim no que encontro entre Logan e Ruth na rua. Hitchcock enquadra metade da face de Larrue, atrás da cabeça de seu colega, mirando pela janela o casal em atitude suspeita.
Sisudo
Apesar desses momentos puramente hitchcockianos, “A Tortura do Silêncio” não conquista o espectador. Além do citado problema da trama, o filme é demasiadamente sisudo. O semblante taciturno de Montgomery Clift representa esse clima. Apesar de sua excepcional interpretação, que revela a angústia de reprimir seu natural desejo de autopreservação, ele não permite que o público se identifique com ele.
Contudo, a falha não vem dele, mas sim da falta de ousadia em relação aos dois outros personagens chaves: Otto e Ruth. O imigrante acrescentaria mais emoção para a história se fosse declaradamente um vilão que houvesse assassinado com a intenção de incriminar o padre para passar por inocente, com o objetivo de roubar e sair ileso. Ruth, na pele de Anne Baxter, parece doce demais, e sua personagem ganharia mais sabor se realmente tivesse traído seu marido com o futuro padre. A atriz sueca Anita Björk era a primeira escolha de Hitchcock para o papel de Ruth, e ela poderia ter dado essa apimentada nessa trama por demais sóbria.
Ficha técnica:
A Tortura do Silêncio (I Confess, 1953) 95 min. Dir: Alfred Hitchcock. Rot: George Tabori e William Archibald. Com Montgomery Clift, Anne Baxter, Karl Malden, Brian Aherne, O.E. Hasse, Roger Dann, Dolly Haas, Charles Andre, Henry Corden, Ovila Légaré.
Assista: trailer de “A Tortura do Silêncio”
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