Cada novo filme de Martin Scorsese desperta a curiosidade de admiradores desconfiados ou de ocasião. Os desconfiados, entre os quais me incluo, torcem para que ele retome a forma que se encerrou em Cassino (Casino, 1995), sua última obra-prima. Entre esses, há os que jogam fora toda ou quase toda sua carreira desde Kundun (1997), e os que salvam alguns filmes: Vivendo no Limite (Bringing Out the Dead, 1999), Gangues de Nova York (Gangs of New York, 2002) Os Infiltrados (The Departed, 2006), eventualmente Ilha do Medo (Shutter Island, 2010) ou O Lobo de Wall Street (The Wolf of Wall Street, 2013) ou Silêncio (Silence, 2016) ou O Irlandês (The Irishman, 2019).
Raramente um desconfiado salva todos esses. Raramente não salva nenhum. Todos eles entendem que sua volta à forma depende em boa parcela da melhor forma de sua montadora frequente, Thelma Schoonmaker, 83 anos, ex-esposa de um ídolo do diretor, o britânico Michael Powell (de A Tortura do Medo, 1960).
Os admiradores de ocasião tendem a amar tudo que ele tem feito, por vezes ao entender que o melhor cinema é o feito agora (não são poucos os que se aventuram pela crítica com esse tipo de pensamento). Em outras, por perceber, inconscientemente ou não, o que tem de flerte com o grande público na carreira do diretor nas últimas duas décadas e meia, e aprovar esse movimento do diretor para uma maior comunicabilidade com o grande público. Os admiradores de Steven Spielberg costumam aprovar melhor essa nova fase de Scorsese do que aqueles (como eu) que acompanham Spielberg com constante desconfiança – uso novamente a questão da desconfiança porque entendo que sua carreira é irregular, assim como a de Scorsese no século 21, com filmes bons sucedendo filmes menos fortes ou até fracos.
O novo filme
Assassinos da Lua das Flores, seu 26º longa de ficção, chega agora ao nosso circuito comercial após deixar vários críticos boquiabertos no Festival de Cannes. Descontada a empolgação, compreensível nesse tipo de festival em que ver um filme pode se equivaler a travar uma batalha, parecia mesmo, pela argumentação desses admiradores, que desta vez Scorsese recuperava, senão totalmente, ao menos parcialmente sua melhor forma. De fato, se o filme não consegue alcançar o nível dos melhores que ele fez neste século, ao menos dá para entendê-lo como o melhor entre os que realizou desde A Ilha do Medo. E a montagem de Thelma Schoonmaker é provavelmente a melhor dela neste século (incluindo os filmes que ela montou para outros diretores).
Esse longa de quase três horas e meia de duração (tempo o bastante para Schoonmaker conter a habitual aceleração scorseseana) é baseado no livro de David Grann e conta a história real de uma série de assassinatos do povo Osage e familiares, nos anos 1920, após eles terem enriquecido pela descoberta de petróleo em suas terras em Oklahoma, um dos estados mais atrasados dos EUA. Homens brancos inescrupulosos foram para essas terras sob o pretexto de construir escolas, hospitais, dar a esse povo uma civilização que eles supostamente não conheciam. Na verdade, querem casar seus filhos homens com as indígenas Osage para que seus netos tenham direito ao patrimônio dos indígenas. Como eles são velhos, a ideia é acelerar o processo encurtando a vida das mulheres Osage, fazendo parecer doença, suicídio ou acidente.
O mais poderoso desses brancos é William Hale, personagem de Robert De Niro que parece uma continuação cinematográfica de seu gangster em Os Bons Companheiros (Goodfellas, 1990). Seu sobrinho Ernest (Leonardo DiCaprio) chega disposto a trabalhar com o tio. Ele se casa com Mollie, mulher indígena vivida pela atriz Lily Gladstone, forte candidata ao Oscar de melhor atuação feminina segundo os admiradores do filme. Ela de fato é boa atriz, mas essa categoria costuma vir muito forte. Veremos.
Logicamente, Ernest será pau mandado das maldades de William Hale, por ser um jovem totalmente manipulável. Mas ele de fato ama Mollie. Gosta do jeito que ela tem de encará-lo, da inteligência que ela demonstra ao ser confortada, talvez isso se misture com a compaixão por sua saúde frágil – ela tem diabetes.
Somente na segunda metade do filme chega o FBI para investigar os assassinatos. É quando o filme adquire uma faceta mais tradicional de thriller, sem que Scorsese abandone uma direção mais curiosa que acelerada, mais anestesiada que sob anfetamina. Scorsese talvez não se empolgue mais com Rolling Stones ou Clash, ao menos ao ponto de usar em seus filmes. Agora ele parece se encantar com Enya ou Dead Can Dance. Talvez ainda o Peter Gabriel de “Passion”, trilha de A Última Tentação de Cristo (The Last Temptation of Christ, 1988). De todo modo, é o recentemente falecido Robbie Robertson, velho amigo e parceiro, que assina a trilha sonora.
Bifurcação estratégica
Primeiro filme de Scorsese a ter no elencoRobert De Niro, maior parceiro do diretor no século 20, eLeonardo DiCaprio, maior parceiro do século 21, Assassinos da Lua das Flores revela ainda um outro aspecto de súmula ao retomar o tom solene e o ritmo cadenciado de Silêncio, filtrados pelo clima de traição constante, pela decadência física dos personagens e pela violência seca, dos tiros na cabeça, de O Irlandês. Se nenhum desses filmes tem DiCaprio, ele é o ator que estranhamente uniu as duas vertentes da obra recente de Scorsese.
No início, seu rosto de moleque envelhecido cria um efeito de deslocamento que contribui para o mistério em torno do filme. Ajuda que Scorsese tenha optado, aqui e ali, por efeitos de cinema mudo, intertítulos e imagens com janela menor, no centro da tela, alternando, por exemplo, com uma câmera lenta curiosa que mostra os Osage comemorando o jorro de petróleo em seus corpos. Tudo isso, não exatamente nessa ordem, nos informa uma atitude um pouco diferente de Scorsese, como se quisesse deixar a impressão de derivação que passou em O Irlandês e fazer ao mesmo tempo uma súmula de suas preocupações temáticas com uma discreta, mas sensível renovação de estilo.
Assassinos da Lua das Flores é o segundo filme mais longo que Scorsese dirigiu, perdendo por apenas três minutos para O Irlandês. Isto tem gerado reclamações bobas nas redes sociais, contra-atacadas pela falácia do “o filme tem a duração que deve ter”, uma bobagem que acaba desrespeitando a própria noção de crítica, que passa também, embora não essencialmente, pela possibilidade de dizer que um filme deveria ou poderia ser maior ou menor do que é.
Por sorte, não é preciso aqui fazer esse papel, já que este longa grandioso tem sua duração plenamente justificada pela necessidade de nos habituarmos aos costumes e dramas do povo Osage, ao entorno que os une à toda sorte de oportunistas brancos, alguns deles supremacistas da bala e da Bíblia, e pelo envolvimento gradual da justiça federal nas investigações, com o cerco se confirmando no terceiro terço.
Filmado do ponto de vista de Ernest, os homens do nascente F.B.I. comandado por J. Edgar Hoover parecem fantasmas que entram sorrateiramente nos ambientes, reúnem-se em clareiras no campo e evitam gritos e pancadarias. Os agentes federais não entram em cena, eles simplesmente aparecem, como seres sobrenaturais. Jesse Plemons, com seu rosto de pedra e expressão contida – que grande ator! – acentua esse lado espectral dos homens da lei, como se eles fossem ainda mais externos àquilo tudo. Nesse sentido, as participações de Brendan Fraser e John Lithgow, em lados opostos nas cenas de julgamento, contribuem no sentido de tirar o filme do campo do etéreo e colocá-lo numa ordem mais concreta.
Curioso notar que Ernest e William Hale, personagens vividos por atores bem mais velhos que eles, em outro deslocamento interessante operado por Scorsese, contratam trapalhões como assassinos, homens que atiram por trás quando deveriam simular assassinato, ostentam um carro dado como se fosse roubado e colocam explosivos demais para explodir uma simples casa. Com esses erros todos, artisticamente valorizados por um elenco de secundários muito bem escolhido, até admira a lentidão da justiça federal, que teve de receber a visita de Mollie para começar a se mexer.
Assassinos da Lua das Flores é um filme curioso. Parece ter dentro de si algo da juventude explosiva do diretor, soterrada pelo desejo maior de fazer filmes de prestígio. Que essa inquietação contraditória permita o renascimento do melhor Scorsese, algo que se faz notar em alguns momentos do filme, mas que ainda não se cristalizou.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
Assassinos da Lua das Flores | Killers of the Flower Moon | 2023 | 206 min | EUA | Direção: Martin Scorsese | Roteiro: Eric Roth, Martin Scorsese | Elenco: Leonardo DiCaprio, Robert De Niro, Lily Gladstone, Jesse Plemons, Tantoo Cardinal, John Lithgow, Brendan Fraser, Cara Jade Myers, Janae Collins.
Distribuição: Paramount Pictures.
Trailer do filme aqui.