Não entendo muito por que alguém escreveria uma biografia ficcional de outra pessoa, mesmo famosa, e, mais ainda, por que alguém leria isso, mas é fato que o livro de Joyce Carol Oates publicado em 2000 se tornou um best seller. Não o li, mas não seria a ideia desrespeitosa? Uma biografia geralmente é construída por um cruzamento de relatos e materiais diversos sobre a vítima, quer dizer, o biografado. Após esse cruzamento, se o biógrafo for talentoso, temos uma ideia da persona construída e do que escapou à construção. Uma biografia pode tanto ser nobre quanto sensacionalista, dependendo do intuito de quem a escreve.
Com uma biografia ficcional temos o quê? Especulações, pura e simplesmente, ou, no melhor dos mundos, uma história criativa a partir de alguém que existiu. Dado o baixo nível do mercado editorial contemporâneo e do que se torna normalmente um best seller, o mais provável é que a primeira hipótese seja a verdadeira.
A biografia ficcional em filme
Aí vamos a Blonde, o filme. Por que alguém filmaria uma biografia ficcional de outra pessoa e, mais ainda, por que alguém veria isso? Resposta: porque está na Netflix, que mesmo perdendo terreno ainda é uma gigante do streaming. As pessoas veem o que se sentem obrigadas a ver. É com isso que conta a plataforma. Fazer o melhor possível importa menos que “causar”, pois é “causando” que se atrai visualizações. Outra resposta: porque tem a atriz sensação do momento, Ana de Armas, no papel principal, o de Marilyn Monroe. Em menor medida: porque seu diretor, o neozelandês Andrew Dominik, após ter estreado em longas com um filme medonho, Chopper – Memórias de um Criminoso (2000), revelou algum talento nos irregulares O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford (2007) e O Homem da Máfia (2012).
Dez anos depois desse último, tendo dirigido dois documentários entre um e outro, One More Time With Feeling (2016) e This Much I Know to be True (2022), este último sobre Nick Cave, músico próximo e trilheiro de seus filmes, Dominik chega com seu quarto longa ficcional, o mais ambicioso até então, com seus 166 minutos e suas trocas de formatos – 1.33:1, 1.66:1, 1.85:1 e cinemascope, com amplo predomínio do primeiro, afinal, pois o 1.33 é o enquadramento da pretensão artística por excelência, bem-sucedida ou não.
De afetado a abjeto
Blonde opõe o trabalho impressionante de Ana de Armas – que no começo custa a nos fazer crer que é Marilyn Monroe até iniciar o relacionamento com Arthur Miller (Adrien Brody numa caracterização interessante) e convencer o escritor como a nós – à direção afetada de Dominik, algo entre o Pablo Larraín de Spencer e o David Fincher de Mank, mas infelizmente pendendo para o primeiro e acentuando os tiques deste, chegando até o ponto de lembrar o Darren Aronofsky de Réquiem para um Sonho.
Mas Dominik não está satisfeito com sua própria afetação e trata de providenciar, nos 40 minutos finais, um dos momentos mais abjetos de que tenho lembrança, para não falar da maneira como filmou o trágico desfecho de que todos sabemos: a ida ao quarto do presidente John F. Kennedy e a obrigação de fazer sexo oral com o “líder do mundo livre”, nas palavras do filme. Demonstração de poder e sexismo visto por uma plateia de voyeurs, na imaginação escapista da atriz.
A punição mora ao lado
Que quase todos os homens do filme sejam exemplos de monstruosidade é compreensível, pela opção do diretor por imagens fortes para reforçar quão terrível é a sociedade patriarcal. Que Marilyn seja tão inocente, também, embora se saiba de sua sempre subestimada inteligência. Lembremos de Martha, uma das grandes obras de Fassbinder, que trabalha com os mesmos valores para denunciar a violência física e psicológica contra as mulheres. Que tudo isso receba o tratamento mais sensacionalista, sem que se pergunte até onde se pode ir e se certas coisas não precisariam de maior cuidado no filmar, só é compreensível num mundo que precisa acentuar o pecado para reforçar a punição.
Cecil B. De Mille fazia a mesma coisa com enorme talento. Andrew Dominik, sendo anti-Fassbinder e anti-De Mille, entra definitivamente no rol de diretores abjetos, de quem se pode esperar excrescências cinematográficas como esta. Menos mal que o filme tem sido malhado em todos os cantos, embora nem sempre (ou quase nunca) por motivos cinematográficos.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
Blonde | Blonde | 2022 | 2h46 | EUA | Direção e roteiro: Andrew Dominik | Elenco: Ana de Armas, Adrien Brody, Bobby Cannavale, Evan Williams, Xavier Samuel, Lily Fisher, Julianne Nicholson, Tygh Runyan, Michael Drayer, Sara Paxton, Ryan Vincent, Vanessa Lemonides, Patrick Brennan.
Distribuição: Netflix.