Clint Eastwood chamou a atenção como diretor de filmes de prestígio, ou filmes de arte, com Bird (1988). Mas, foi seu filme seguinte, Coração de Caçador (White Hunter Black Heart, 1990), que assim o consolidou, mesmo sendo um filme inferior. Inclusive no Brasil, com sua exibição na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Para os cinéfilos, público-alvo desse festival, foi um presente, pois a obra retrata os bastidores do clássico Uma Aventura na África (The African Queen, 1951), de John Huston.
O roteiro se baseia no livro de Peter Viertel, sobre sua experiência como roteirista desse filme rodado na Uganda e no Congo. É um relato romanceado, e os personagens ganham nomes fictícios. Por exemplo, John Huston se torna John Wilson, e o roteirista, Peter Verrill. Na trama, a principal motivação do cineasta para a viagem à África é fazer um safári e matar um elefante. Na realidade, para ele, o filme servia para financiar essa obsessão e não constituía o objetivo principal. Sintomaticamente, Coração de Caçador se passa todo antes de as filmagens começarem e, por ironia, o longa se encerra quando John Wilson grita “Ação!”.
Huston, por Eastwood
O próprio Clint Eastwood interpreta o protagonista. A princípio, causa estranheza sua atuação nesse papel sem precedentes em sua carreira de ator. Isso porque Eastwood imita os trejeitos e expressões peculiares de John Huston, mas não tenta se parecer fisicamente com ele. Demora um pouco para nos acostumarmos, pois a figura de Eastwood também é marcante. Quando, enfim, acreditamos que estamos diante de John Huston e não Eastwood, conseguimos entrar na história sem distrações.
Mas, apesar de o enredo ter como tema uma caçada, não se trata de um filme de ação. É muito mais uma exposição da lendária persona de John Huston. Nesse sentido, a história reforça sua intransigência, sua obstinação, sua aptidão para brigas e, até seu egoísmo. Esse último aspecto toma posição central no arco de seu personagem, que culmina em uma tragédia que o faz pensar sobre como ele será dali para frente. A conclusão deixa em aberto o motivo que fez o cineasta, ora caçador, não atirar no elefante quando se enfrentaram cara a cara. Mas, provavelmente ele viu no magnífico animal um ser muito superior a ele, que se achava o máximo. Em outras palavras, o elefante serviu-lhe como uma lição de humildade.
Isso não quer dizer que o filme critique o diretor, apesar de os demais personagens reclamarem de seu comportamento, que podia prejudicar a produção. Na verdade, o filme até defende John Huston, a.k.a. John Wiston, em dois momentos distintos em que ele luta contra o anti-semitismo de uma mulher e contra os castigos físicos que o gerente do hotel aplica nos empregados negros.
Ação?
Coração de Caçador se distancia da filmografia que Eastwood apresentara até o momento. Definitivamente, ele não se preocupou em agradar ao grande público. Nesse ponto, guarda semelhança com o personagem que interpreta, pois Huston se negava a mudar o final deprimente do roteiro original. No entanto, após a tragédia na caçada Huston resolve mudar essa conclusão, deixando-a com o desfecho otimista da versão filmada. Porém, Eastwood manteve aqui o filme tal qual planejou, sem concessões. O resultado é um filme lento, sem ação, e com cenas que beiram o absurdo, como o jantar com a equipe e o elenco na aldeia indígena. Saiu satisfeito com o resultado, seu filme autoral por excelência.
Assim, Coração de Caçador não é só um presente para os cinéfilos que nele encontram um filme sobre cinema, mas também para os críticos franceses que defenderam o cinema autoral de Clint Eastwood. Posteriormente, com Os Imperdoáveis (Unforgiven, 1992), viria também o reconhecimento da Academia e do público em geral.
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Ficha técnica:
Coração de Caçador | White Hunter Black Heart | 1990 | EUA | 112 min | Direção: Clint Eastwood | Roteiro: James Bridges, Burt Kennedy | Elenco: Clint Eastwood, Jeff Fahey, Charlotte Cornwell, Norman Lumsden, George Dzundza, Edward Tudor-Pole, Catherine Neilson, Marisa Berenson, Richard Vanstone, Jamie Koss, Geoffrey Hutchings, Christopher Fairbank, Alun Armstrong, Clive Mantle, Mel Martin.