A 46ª Mostra exibe os dois filmes mais conhecidos de Jean Eustache, um dos melhores cineastas da geração que veio após a nouvelle vague. Por conhecidos, imaginava que seria dentro de um círculo limitado da cinefilia, mas pelo que soube a sessão de A Mãe e a Puta (La Maman et la Putain, 1973) lotou no Cinesesc neste último sábado à tarde. Para um filme de quase 4 horas de duração, que já está disponível na internet nessa mesma restauração e num período em que as pessoas estão se habituando ainda a voltar aos cinemas, está mais do que bom.
No mesmo horário passava Meus Pequenos Amores (Mes Petites Amoureuses, 1974), o segundo dos dois Eustache exibidos na Mostra. Eu estava nessa sessão. Não tinha muita gente, na melhor sala da Cinemateca Brasileira. Mas não dava para reclamar da frequência, até razoável para o filme que é menos celebrado dos dois. Cópia igualmente restaurada em 4k, também em formato 1.33:1, mas em cores, enquanto A Mãe e a Puta é preto e branco.
A Mãe e a Puta
Nos dois filmes temos homens, em especial o protagonista, correndo atrás de mulheres. Em A Mãe e a Puta esse homem é Jean-Pierre Léaud, que talvez tenha justamente nesse momento o seu amadurecimento artístico. Ele nunca esteve tão bem. Nem mesmo em Domicílio Conjugal (Domicile Conjugal, 1970), de seu padrinho François Truffaut. Em 1973, ao mesmo tempo em que protagoniza o filme de Eustache, Léaud coprotagonizava o romântico A Noite Americana (La Nuit Américaine, 1973), de Truffaut. São dois papeis bem diferentes, já que neste último ele é um homem inseguro, que pergunta se as mulheres são mágicas.
No filme de Eustache, Léaud está impressionante como o mulherengo Alexandre, que tem um relacionamento meio aberto meio mal resolvido com Marie (Bernadette Lafont) e se envolve com a enfermeira Veronika (Françoise Lebrun). No primeiro encontro com esta última, após eles terem se conhecido na rua, ele dá um pequeno show com tiradas espetaculares e um carisma irresistível. Mais tarde, num longo diálogo situado mais ou menos no miolo do filme, sua interpretação é tocante como nunca havíamos visto até então. Léaud era um bom ator. Neste filme, ou a partir dele, torna-se um monstro da interpretação.
Meus Pequenos Amores
Em Meus Pequenos Amores, o pequeno Daniel (Martin Loeb) deixa a idade de evitar as garotas para começar a persegui-las. Estrategicamente ou não, ele prefere a companhia de meninos mais velhos, já adolescentes, mais experientes que ele na arte da paquera. Isso quando está com a mãe, aliás, Ingrid Caven, atriz que foi trabalhar com Eustache porque seu grande amigo Rainer Werner Fassbinder a aconselhou. O gigante alemão havia adorado um dos primeiros filmes de Eustache, Le Père Noël a les Yeux Bleus (1966), que, por sinal, é protagonizado por Léaud, e seu personagem também se chama Daniel.
Quando está com a avó, em Meus Pequenos Amores, Daniel é o mais velho de sua turma. O sentido de posse, devido à criação machista, principalmente da avó, significará alguns percalços na aproximação junto ao sexo oposto. Mas ele aprenderá, com as meninas, que um “não” é realmente “não”.
A duração em Eustache
O trabalho com a duração é especial em Eustache. Em A Mãe e a Puta, com mais ou menos uma hora de duração nos perguntamos se ele vai conseguir sustentar esse tom até mais de 3 horas e meia. Com duas horas de filme já estamos fisgados pelos encontros de Alexandre, e o final surge surpreendente, pois nos acostumamos ao fluxo das imagens a tal ponto que começamos a estranhar a ideia de que uma hora aquilo termine.
Com Meus Pequenos Amores ocorre algo semelhante. Talvez por ser ainda mais episódico, cheio de vinhetas independentes na vida do pequeno Daniel, quando ele e o amigo seguem duas irmãs temos um esboço mais convencional da narrativa, num momento em que começamos a torcer não só para que ele se dê bem, mas também para que seja delicado, que respeite a menina, e que ela goste dele também. Pouco tempo depois, o filme nos surpreende com os letreiros finais. Mentalmente, ainda parecia faltar no mínimo meia hora. Isso acontece porque os filmes de Eustache não costumam ter começo, meio e fim.
Divisão em atos? Convencionalismo tolo para ele. O que interessa são pedaços de vida, à maneira do neorrealismo, mas já amadurecido em quase trinta anos de influências diversas e novas aproximações de uma ideia de cinema realista. E também por Eustache, nos documentários que ele rodou entre Le Père Noel e A Mãe e a Puta.
Sempre acreditei que o fino da Mostra SP e do Festival do Rio eram as retrospectivas, assim como as obras restauradas. O único senão é que fica difícil voltar aos contemporâneos depois de ver alguns filmes que já passaram pela prova do tempo.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
A Mãe e a Puta e Meus Pequenos Amores | Esses dois filmes de Eustache estão na programação da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (20 de outubro a 2 de novembro de 2022).