Dois Papas retrata a singular transição entre o Papa Bento XVI, que renunciou ao cargo, e o atual Papa Francisco, o primeiro originário do hemisfério sul.
Produzido pela Netflix, Dois Papas certamente foi aprovado com intenção de atrair o imenso público católico. Porém, sob a direção de Fernando Meirelles, o filme apresenta um debate de ideias e uma mensagem universal de convivência que agrada a uma gama muito mais vasta de espectadores.
Dois Papas parte de imagens reais da cobertura da morte do Papa João Paulo, em 2005, para em seguida mesclar com cenas do processo de escolha do sucessor, filmadas para o filme. O espectador, então, pode testemunhar como funciona essa eleição do novo papa. Na primeira votação, não há a maioria necessária para a definição de um nome. No segundo escrutínio, o eleito é Joseph Aloisius Ratzinger, que assumiria como Papa Bento XVI. O cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio ficou em segundo lugar nessas apurações.
Buenos Aires
O filme então corta para Buenos Aires, para apresentar Bergoglio, um bispo progressista, com ideias que mudavam o tradicionalismo da Igreja Católica. Dois Papas o retrata como um homem simples, que se sentia como se fosse uma pessoa como as outras, que era fanático por futebol e dançava tango. Mas não há intenção de enaltecê-lo exageradamente. Em um momento posterior, em flashback, ele contará seu passado, e sua escolha na época da ditadura que o deixou em conflito por toda a vida.
Incomodado, Bergoglio se encontra com o Papa Bento XVI para pedir sua aposentadoria. O local da reunião já lhe soa contrário aos seus ideais, pois acontece na opulenta residência de verão do papa, para onde é conduzido em um luxuoso Mercedes. A primeira conversa evidencia as opiniões divergentes dos dois, em tom veladamente agressivo, como convém à posição deles. São dois momentos de discussão. Uma no jardim e outro no interior da residência. Ambas deixam o espectador totalmente absorvido nas questões debatidas através de um diálogo inteligente, e algumas inusitadas tremulações da câmera, que vislumbram a mão do cineasta Fernando Meirelles, diretor de Cidade de Deus.
Porém, se Bergoglio é humanizado com seus conflitos internos pelo seu passado na ditadura argentina, o mesmo acontece com Ratzinger. Seu mandato é manchado pelos escândalos de assédio sexual que afloram na época. Dois Papas não condena o Papa, que solicita humildemente que Bergoglio ouça sua confissão. O público não escuta suas confidências, o filme preserva sua figura e respeita o sigilo deste ato, mas entende, nesse momento, que Ratzinger também é uma pessoa comum. Portanto, sujeito a erros como todo mundo.
Convivência pacífica
Acima de tudo, Dois Papas prega a convivência pacífica entre pessoas com ideias opostas. Ouvimos essa mensagem no filme no próprio discurso do já empossado Papa e no conceito do seu roteiro. Afinal, os dois papas, antagônicos em suas convicções, desenvolvem um relacionamento de confiança e intimidade, que lhes permite até se divertirem na cena final.
Além disso, há um paralelo entre o contraste do tradicionalismo defendido pelo Papa Bento XVI e a modernidade do futuro Papa Francisco com o cinema tradicional e o estilo moderno de Fernando Meirelles. Recursos clássicos, como repetir o novo processo de escolha de um papa na parte final do filme, e os planos e contraplanos dos vários momentos de discussão, se distinguem da câmera trêmula, por exemplo. E tudo convive harmoniosamente em Dois Papas. E reforçam a mensagem do filme na sua própria mise-en-scène, em tudo o que vemos na tela.
As interpretações de Jonathan Pryce e de Anthony Hopkins são soberbas. Hopkins transmite a dura fachada do papa de origem alemã que possui uma leveza trancada no seu interior, num papel que poderia transformar em vilão o Papa Bento XVI se fosse interpretado por um ator menos talentoso. Já Jonathan Pryce surpreende por sua personificação física, colocando na tela uma imagem muito semelhante ao do Papa Francisco, como algumas imagens de arquivo no final do filme comprovam.
O roteiro é de um especialista em cinebiografias de sucesso: Anthony McCarten. Ele escreveu A Teoria de Tudo, O Destino de uma Nação e Bohemian Rhapsody, respectivamente, sobre Stephen Hawkings, de Winston Churchill e da banda Queen.
Com todas essas qualidades, Dois Papas é um filme que merece ser visto, não só por católicos, como por todos. Principalmente por sua mensagem central, extremamente relevante na atual época de extrema polarização de opiniões contrárias.
Ficha técnica:
Dois Papas (The Two Popes, 2019) Reino Unido/Itália/Argentina/EUA. 125 min. Dir: Fernando Meirelles. Rot: Anthony McCarten. Elenco: Jonathan Pryce, Anthony Hopkins, Juan Minujin, Luis Gnecco, Cristina Banegas, Maria Ucedo, Renato Scarpa.
Trailer:
Assista: entrevista com Fernando Meirelles sobre Dois Papas
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