Para um filme que tem sido saudado como uma das maiores maravilhas dos últimos tempos, Drive my Car, de Ryusuke Hamaguchi, tem lugares comuns em quantidade preocupante. Não penso somente na cena da descoberta de traição após uma viagem cancelada, toda filmada da maneira mais óbvia possível, mas também em diálogos como o que explica do que faleceu Oto Kafuku (Reika Kirishima), esposa do ator e diretor de teatro Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima): “uma hemorragia cerebral, tão repentino”, ou algo parecido, diz alguém no funeral. Pior ainda que mais adiante o viúvo vai falar o mesmo motivo para outra personagem. Custava deixar alguns minutos no mistério para evitar o diálogo explicativo?
Há ainda cenas de sexo publicitárias. Por mais que o cinema japonês recente esteja cheio delas, uma herança mal resolvida do roman porno, é curioso ver diretor tão incensado pela maior parte da crítica e da cinefilia ser tão convencional nesses e em alguns outros momentos.
Fim do prólogo
Os créditos surgem após 40 minutos de filme, e é quando termina o prólogo da esposa e começa o motivo principal contido no título: dirija meu carro. E aí vemos o envolvimento de Yusuke Kafuku com Misaki (Toko Miura), funcionária de um festival em Hiroshima. Encarregada de dirigir o carro para ele, ela acaba dirigindo muitas outras coisas. Será a responsável por colocar a vida desse homem atormentado em um processo de superação.
E nesse processo, acontece algo também na forma do filme: é como se iniciasse um combate contra os lugares comuns da primeira parte – os lugares do marido, do ator, do viajante, um tom meio blasé que vai sendo desconstruído nesse novo ambiente. O hábito de Yusuke de repetir as falas da peça em que está trabalhando enquanto dirige, por exemplo, é prejudicado pela insistência do festival em não permitir que os artistas dirijam, exigência devida a um atropelamento causado por um artista do festival no passado. E mesmo o combate aos lugares comuns será também prejudicado pela aparição de outros lugares comuns, ainda que mais escondidos pelo nosso envolvimento com a narrativa, que finalmente decola na segunda hora.
A segunda hora
O filme vai funcionando em etapas, e a previsibilidade de algumas cenas não atrapalha nossa fruição. Pelo contrário, ela permite que nos atentemos a alguns detalhes. Quando começa a leitura conjunta do texto, o filme cresce também por conta dos olhares de Yusuke, que não sabemos ao certo se são de aceitação ou preocupação, numa interpretação extraordinária de Hidetoshi Nishijima.
Pouco depois acontece a melhor cena até então, o momento em que o filme cresce: quando Kafuku e a motorista vão jantar na casa do assistente e de sua esposa muda, também atriz da peça que estão ensaiando (e o convite do assistente já nos deixa antever o que irá ser revelado). Durante o jantar, com a esposa falando por sinais e traduzida pelo marido, a graça acontece: ao elogio de Kafuku, Misaki sai da mesa e do quadro. Só após um tempo, há uma correção da câmera e vemos que ela tinha ido brincar com o cachorro do lado da mesa, numa reação à falta de jeito com o elogio recebido. Não faz sentido reclamar de previsibilidade quando o filme nos brinda com detalhes belos como esse.
Perto da convenção
Hamaguchi trabalha com a convenção, ou perto da convenção, o que pode desconcertar quem espera sempre novidades do cinema, ainda mais de um diretor tão elogiado. As reações dos personagens são as esperadas, sem surpresa alguma. Assim é, inicialmente, a relação do diretor Kafuku com o jovem ator Takatsuki (Masaki Okada). Mas aí, em dado momento, temos uma feliz distorção. Na tentativa de quebrar o deslumbre técnico do jovem ator, Kafuku tira-lhe o chão, e os caminhos dos dois se cruzam de modo conflituoso, mas proveitoso para ambos. A experiência de um procura corrigir o que a energia do outro estraga, ou impede que se chegue a uma qualidade maior. No fundo, vemos o famoso querendo ser realmente artista, e o artista verdadeiro fazendo com que esse processo seja doloroso, talvez para ser mais eficaz e convincente.
Nas três horas de duração, Drive My Car nos oferece esses encantos, que superam de longe os lugares comuns. Pode não ser a obra-prima que muitos têm pintado, mas é um filme que sugere Hamaguchi como uma força bem-vinda no cinema japonês contemporâneo. Esperemos que a glória, chegando cedo demais, não coloque tudo a perder.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
Drive My Car | Doraibu mai ka | 2021 | Japão | 179 min | Direção: Ryusuke Hamaguchi | Roteiro: Ryusuke Hamaguchi, Takamasa Oe | Elenco: Hidetoshi Nishijima, Toko Miura, Reika Kirishima, Yo-rim Park, Dae-Young Jin, Sonia Yuan, Satoko Abe, Masaki Okada, Perry Dizon.
Gostou? Então, leia também:
- texto “Explicações sobre Drive My Car, de Ryusuke Hamaguchi“.
- crítica de Roda do Destino, também com dirigido por Ryusuke Hamaguchi.