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Explicações sobre DRIVE MY CAR, de Ryusuke Hamaguchi

Drive My Car (filme)
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Nesse texto, colocamos algumas explicações sobre Drive My Car, longa de Ryusuke Hamaguchi que já está na lista dos melhores filmes de 2021. Merecidamente, conquistou vários prêmios, entre eles o de melhor roteiro em Cannes, onde também ganhou o prêmio FIPRESCI e o prêmio do júri ecumênico. Além disso, concorre a quatro estatuetas do Oscar em categorias importantes: melhor filme, melhor diretor, melhor roteiro adaptado e melhor filme internacional. No entanto, não é um filme com apelo popular como Parasita, de Bong Joon Ho, que arrebatou quatro destes Oscars.

O filme de Hamaguchi tem seu ritmo próprio, que merece ser degustado como um bom livro – aliás, fonte do qual ele se origina (o conto escrito por Haruki Murakami). Nesse quesito, lembra o cinema de David Lean, principalmente em suas adaptações de Doutor Jivago (1965) e Passagem para a Índia (1984). São obras longas que envolvem o espectador gradualmente, e, como num romance, devem ser apreciadas no seu devido tempo, sem pular páginas, ou desistir no meio. Afinal, todas as sentenças importam, bem como todas as cenas, no caso do filme. E convidam à reflexão posterior, e somente após dedicar horas de pensamento, podemos compreendê-lo plenamente.

Leia abaixo explicações sobre o Drive My Car, pelo menos alguns pontos que consideramos essenciais. E, claro, dentro de nossa leitura fílmica, que, como em toda obra artística, pode divergir de outras, sem existir uma verdade absoluta. Para isso, não há como evitar alguns spoilers.

Estrutura narrativa diferenciada

Antes de entrarmos na exposição desses pontos, vale destacar a estrutura narrativa diferenciada que Hamaguchi adotou. O prólogo, se podemos assim chamá-lo, dura aproximadamente quarenta minutos, que é o quanto demora para aparecerem o título do filme e os créditos iniciais. Nessa parte inicial, conhecemos a vida do protagonista Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), um ator e diretor de teatro. Ele é casado há vinte anos com Oto (Reika Kirishima), uma roteirista de televisão. Os dois perderam uma filha de quatro anos, e Oto não quis ficar grávida novamente. O casal possui um ritual inusitado. O processo criativo de Oto acontece quando ela faz sexo com Yusuke. Ela conta a história que imagina, mas, na manhã seguinte, não se lembra do que falou. Por isso, Yusuke precisa recontar o que ouviu.

A rotina funciona bem, e o casal parece se entender bem, apesar de que a felicidade plena se foi com a morte da filha. Certo dia, Yusuke a flagra transando com outro homem. Mas, prefere não falar nada, pois tem medo de perder a esposa. Porém, Oto percebe que ele está diferente, no dia em que o marido diz que não se lembra da história que ela contou durante a transa da noite anterior. Se ele não se lembra, deduz ela, é porque ele não estava verdadeiramente presente durante o sexo. Quando Yusuke se despede para ir trabalhar, a esposa pede que eles conversem à noite. Com medo de ter que enfrentar o assunto do adultério, ele enrola para voltar para casa. E, quando chega, encontra a esposa desacordada no chão. Oto morreu de hemorragia cerebral.

O verdadeiro eu

Yusuke se culpa pela morte da esposa, pois se tivesse ido direto para casa, talvez pudesse salvar a vida dela. Por isso, no palco, não consegue mais interpretar o personagem Tio Vania, da peça de Anton Tchekhov. Conforme ele afirma, posteriormente, no filme, os personagens de Tchekhov expõem o ator. “Tchekov é assustador. Quando recita suas falas, você mostra seu verdadeiro eu.”, diz Yusuke. E, ele não está em paz consigo mesmo. Então, o filme corta para dois anos depois, quando Yusuke parte para Hiroshima, para dirigir a peça “Tio Vania” no teatro da cidade, numa temporada prevista de três meses. É nessa partida para a viagem que aparecem o título do filme e os seus créditos iniciais.

Em Hiroshima, entra na história a outra protagonista, Misaki Watari (Toko Miura), a motorista particular contratada pelo teatro para Yusuke. Ela é uma jovem de 23 anos, de origem humilde. Introspectiva e com uma infelicidade aparente, ela nunca sorri. Por isso, quando o diretor de teatro pede à sua motorista que o leve para algum lugar para conhecer a cidade, ela o leva para o centro de tratamento de lixo. A escolha tem uma explicação. O local, nada turístico, tem importância para ela, pois foi lá que ela conseguiu seu primeiro emprego ao chegar em Hiroshima sozinha.

A aproximação

Aos poucos, esses dois personagens tão diferentes se conectam. Ela tem a idade que teria a filha de Yusuke, mas o que eles têm de mais forte é o sentimento de culpa pela morte de pessoas próximas. Yusuke pela esposa, e Misaki pela mãe, que morreu soterrada na casa onde moravam. A garota se lastima por não ter tentado salvá-la. A revelação vem após um jantar com um casal que faz parte da peça, quando Yusuke elogia Misaki, e essa fica sem jeito – um raro momento de humor do filme.

A gradual aproximação se reflete no simbolismo de onde Yusuke se senta no carro. A princípio, no banco de trás. A presença da esposa morta ainda é massiva, pois ele costuma ouvir as falas que ela gravou dos personagens da peça “Tio Vania”, exceto a do protagonista, para que ele pudesse treinar na época que o interpretava. Mas, após uma conversa franca com um dos atores da peça, na qual ele revela sua intimidade, diante do testemunho de Misaki, o diretor se senta no banco de passageiros, ao lado da motorista. Afinal, ela já conhece todos os seus segredos.

Os dois se ajudam, e esse processo se acentua quando Drive My Car se transforma num road movie, que os leva até a aldeia natal de Misaki. É uma viagem ao interior do Japão, mas também ao interior dos personagens. A jovem visita o local onde morava com a mãe, que é o mesmo onde ela morreu. Neste momento de catarse, os dois se apoiam com palavras não só de conforto, mas de aceitação pela morte da esposa/da mãe, afastando a culpa que os atormenta.

O som do silêncio

O processo de redenção se completa no teatro. Durante todo o filme, as falas da peça sempre guardam ligação com a história que acompanhamos, como se fosse a presença do inconsciente. Perto da conclusão, isso fica ainda mais forte. No desfecho de “Tio Vania”, as falas que a atriz muda diz em linguagem de sinais ganham um impacto enorme, quando o silêncio invade o teatro e, consequentemente, a cena do filme. As legendas são o recurso para que todos compreendam as sentenças que aqui importam ainda mais. Saindo um pouco do filme, essa conclusão da peça em linguagem de sinais dialoga fortemente com o tema da inclusão de outro filme importante de 2021, No Ritmo do Coração (CODA).

O último trecho do filme traz a motorista sutilmente com outra atitude. Ela dirige um carro do mesmo modelo que do Yusuke (é outro porque a placa é diferente) para ela mesma, com um cachorro parecido com o do casal da trupe do teatro que a convidou com Yusuke para jantar. Provavelmente, o veículo e o cão representam os elementos que mais a atraíram na vida dessas pessoas que ela conheceu recentemente.

Ela veste uma máscara de proteção, o que ninguém usou durante todo o filme. O apetrecho é estratégico para prestarmos atenção em seu rosto quando ela o retira. Em close, percebemos que ela atenuou a cicatriz que ela mantinha para se lembrar de sua culpa pela morte da mãe. Enquanto a redenção de Yusuke fica demonstrada pela sua volta aos palcos como ator de “Tio Vania”, a de Misaki está neste final, principalmente pela cicatriz e por um, bem discreto, sorriso em seu rosto.

O método Kafuku

Os ensaios preparatórios para a peça em Hiroshima também são essenciais para a trama de Drive My Car. Conforme destacamos antes, todas as sentenças importam, até mesmo aquelas ditas na peça. E, isso inclusive faz parte do método de trabalho do protagonista Yusuke como diretor de teatro. Ele pede ao elenco que leia a peça diariamente, compreendendo cada fala de qualquer personagem. “Preciso saber todos os diálogos para pode atuar. Acho que dessa forma eu posso sentir as emoções dos outros. Se eu aprendo os meus diálogos e as partes dos outros, eu posso reagir melhor.”, resume, mais ou menos assim, uma das atrizes do elenco.

Por isso, a peça tem intérpretes de várias nacionalidades. Cada um fala em sua língua nativa, e isso inclui também a atriz que é muda e usa a linguagem dos sinais. No teatro, e na tela do filme, as legendas transcrevem todas as falas para os espectadores. E os atores, segundo o método de Yusuke, já conhecem todos os diálogos da peça. E, isso se relaciona com a essência do filme, pois conhecer as emoções das outras pessoas, exemplificada na troca entre Yusuke e Misaki, traz a paz interna. Aliás, nesses dois casos, faltou antes essa sabedoria para eles em relação à esposa (de Yusuke) e à mãe (de Misaki).

Um toque de maldade

Por fim, antes de finalizarmos as nossas explicações sobre Drive My Car, é preciso também comentar sobre a maldade de Yusuke em relação ao jovem ator televisivo, Koshi Takatsuki (Masaki Okada). Colega e possível parceiro sexual da esposa de Yusuke, ele é uma celebridade que se deixou estragar pela fama. Ele reage violentamente a qualquer pessoa que o fotografe, e assume que se sente vazio por dentro. Sabendo que as peças de Tchekhov expõem a verdadeira essência do ator, Yusuke escala Koshi para o papel mais difícil, o de Tio Vania. No fundo, o diretor, ainda amargurado e se culpando pela morte da esposa, quer ver a ruína de Koshi, numa não plenamente consciente vingança pelo envolvimento dele com sua esposa.

Enfim, essas são algumas das interpretações e explicações sobre Drive My Car, uma obra densa e rica do diretor japonês Ryusuke Hamaguchi. Não deixe de ler, também, o texto crítico que o professor Sérgio Alpendre escreveu especialmente para o Leitura Fílmica (acesse aqui.)

Adendo (31/03/2022) | Podemos, também, considerar que o carro vermelho da parte final é o carro de Yusuke, mas com outra placa porque foi relicenciado na Coréia do Sul, onde se passa esse segmento final. Nesse caso, assumimos que o cachorro, também, é o aquele que era do casal. Então, ela ganhou ou comprou esses dois elementos antes de viajar para o outro país.

Se preferir, assista ao vídeo com esse texto em nosso canal no Youtube.

Trailer:
Onde assistir "Drive My Car":

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