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Ela Disse (filme)
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Ela Disse | Por Sérgio Alpendre

Avaliação:
7/10

7/10

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Crítica | Ficha técnica

Em um momento importante de Ela Disse (She Said), Jodi Kantor (Zoe Kazan), jornalista do New York Times que investiga um caso de abuso sexual em Hollywood, recebe a ligação de Rose McGowan, atriz que iniciou a onda de denúncias contra Harvey Weinstein. Sua filha observa a reação da mãe enquanto Rose informa da sistematização do abuso em Hollywood. Jodi imediatamente escreve a senha da Netflix para que a filha se distraia enquanto a mãe trata de assuntos de adulto. O filme não é da Netflix, é da Universal, então a propaganda é gratuita. Aliás, a menina fica bem feliz com a cena. Supõe-se que irá se divertir bastante no catálogo.

Mas vejam em que contexto essa suposta propaganda está inserida: quando se expõe que os abusos sexuais em Hollywood, o que podemos traduzir tranquilamente para “na produção de filmes”, são frequentes, onde quer que sejam feitos e havendo um homem branco por trás. Ou seja, a diretora Maria Schrader, nada ingênua, como já mostra desde o início num plano de cama em que Carey Mulligan parece deformada, refletindo o perigo de sua profissão, implica toda e qualquer empresa cinematográfica no processo, ainda que indiretamente.

De fato, a implicação vai para toda a masculinidade heterossexual e a formação patriarcal da sociedade capitalista, que leva a monstruosidades como a de Harvey Weinstein e outros poderosos de qualquer indústria. Esse é o grande valor do filme de Schrader. Mostrar que a luta contra o assédio sexual já é, e deve continuar sendo universal, sem limites e sem freios, até que o último abusador seja punido, de preferência com exposição pública.

O brilho do elenco

Se é um valor predominantemente extra fílmico, a diretora, consciente disso, trata de arranjar uma narrativa sóbria, sem firulas, permitindo o brilho do elenco, sobretudo de suas atrizes. Se Hollywood tem atravessado uma crise que parece eterna nos últimos vinte anos, é certo que boa parcela dos filmes que prestam são centrados nas atuações, no enorme manancial de talento que Hollywood ainda revela. Este é um desses filmes.

A outra jornalista que protagoniza a trama com Jodi é Megan Twohey (Carey Mulligan). Antes de tirar licença-maternidade, ela havia recebido ameaças de morte por causa de sua reportagem sobre assédios sexuais cometidos por Donald Trump. E, mesmo após as denúncias, Trump foi eleito presidente dos EUA em 2016, corroborando para a impressão de inutilidade das denúncias e para o medo das denunciadoras irem a público.

Espelhamento

O filme trabalha o espelhamento das duas jornalistas. A tal ponto que os cônjuges de ambos parecem o mesmo ator (com óculos o de Jodi, sem óculos o de Megan), reforçando a semelhança entre as duas, na personalidade e no talento profissional, no ímpeto com que trabalham, na emoção que demonstram nas conquistas. Mas também fisicamente, já que as duas têm o mesmo aspecto, rosto de menina e são vistas, numa cena com vestidos brancos bem parecidos. E na cena seguinte, ambas com camiseta polo escura para fora da calça e cabelos soltos (os de Jodi repartidos ao meio, os de Megan com franja).

Em certo ponto, até o lado da cama de uma delas muda para igualar ao da outra. Megan havia sido mostrada no começo do lado direito da cama, e na segunda parte do filme é mostrada do lado esquerdo, atendendo uma ligação de Jodi, que também dormia do lado esquerdo. Até as delegações de trabalho doméstico para seus maridos se assemelha, assim como as decorações de suas casas.

Diferenças entre EUA e Brasil

Como o filme é baseado na reportagem investigativa das duas jornalistas reais que o protagonizam, Jodi e Megan, os nomes das pessoas envolvidas também são reais, sem a necessidade de mudança: Rose McGowan, Ashley Judd, Gwyneth Paltrow, Donald Trump, Harvey Weinstein… Imaginem daqui a algum tempo um filme de ficção no Brasil sobre os casos de corrupção que ainda serão investigados usando os nomes reais das pessoas envolvidas. E não os comumente usados nomes com disfarces. Nada de Jairo Bosoliro ou algo do gênero, mas o verdadeiro nome do vilão, do mesmo modo como ele é frequentemente nomeado nos filmes americanos.

Uma outra diferença entre EUA e Brasil, pelo que se percebe de representações cinematográficas, é desvantajosa para os EUA. É que lá parece comum uma jornalista bater na porta de alguém de surpresa para perguntar coisas espinhosas na frente da esposa (ou do marido, ou da mãe, ou da filha). Assim, fazendo do ofício jornalístico uma prática extremamente invasiva, mais do que nos habituamos a ver. Seria um efeito meramente cinematográfico? Devo admitir que funciona. Mas a simples ideia de que seja uma prática comum nos EUA já causa algum desconforto.

Jornalismo investigativo

O formato de Ela Disse não difere muito de outros filmes de jornalismo investigativo. Como Spotlight: Segredos Revelados (Spotlight, 2015) e a principal referência moderna Todos os Homens do Presidente (All the President’s Men, 1976). Ela Disse, aliás, dá um jeito de ter o seu “garganta profunda”, com referência ao personagem enigmático de Todos os Homens do Presidente.

Para esse tipo de filme dar certo, é necessária uma escalação de elenco perfeita ou quase. No filme de Pakula, temos Dustin Hoffman e Robert Redford como os jornalistas do Washington Post que desnudam Watergate.

No filme de Schrader, é inevitável dar o destaque para as duas brilhantes atrizes, que podem ter atingido, com este filme, o melhor momento de suas carreiras. Tanto Carey Mulligan parece a atriz certa, entre a fragilidade aparente e a força subterrânea que ela sabe usar quando necessário, quanto Zoe Kazan, que finalmente parece ter se livrado de sua carinha de menina de filme indie, o que era uma limitação evidente para seu talento. Zoe está perfeita como a jornalista que, como diz sua parceira em um momento do filme, não é tão intimidadora, mas que se envolve de tal modo com as histórias que ouve, que ficamos tocados juntos com ela.

Auto blindagem

Perto do fim, como se resolvesse cair propositadamente na armadilha que se oferecia desde o início, o filme se perde um pouco entre breves flashbacks e uma alegria conjunta à espera do clique definitivo. Como se não bastasse, os letreiros finais explicando como a reportagem se tornou o estopim para um “basta”, que é um passo importante, mas está longe de ser definitivo, colocam o filme dentro da desnecessária redoma da auto blindagem. Como a luta é grande e justa, o filme ainda toca qualquer humano não dominado pelo monstro dentro de si. Mas não deixa de ser uma decepção pelo que sua estrutura vinha prometendo.

Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.

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Ficha técnica:

Ela Disse | She Said | 2022 | EUA | 129 min. Direção: Maria Schrader | Roteiro: Rebecca Lenkiewicz | Elenco: Carey Mulligan, Zoe Kazan, Patricia Clarkson, Andre Braugher, Jennifer Ehle, Samantha Morton.

Distribuição: Universal Pictures.

Gostou do tema? Então, conheça também O Escândalo (Bombshell, 2019).

Trailer:
Ela Disse
Onde assistir:
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