Quando uma comédia aparenta ser mais uma derivada da série American Pie, mas se desenvolve com a possibilidade de algumas discussões sobre racismo, e de lambuja também sobre sexismo e abusos alcoólicos, temos motivos para comemorar. Quando, além disso, ela consegue se elevar acima da média da comédia contemporânea americana, estamos mesmo diante de um objeto alienígena. Emergência (Emergency), de Carey Williams, candidata-se a ser esse tipo de comédia, um chamado à reflexão que não abdica da diversão.
Sean (RJ Cyler) e Kunle (Donald Elise Watkins) têm um plano. Querem ser os primeiros negros a fechar todo o circuito de festas colegiais, e com isso entrar para uma espécie de galeria com os primeiros feitos de pessoas negras, um panteão de desafios à América racista. Mas na noite programada para realizar tal façanha, eles encontram uma adolescente branca desmaiada na casa onde moram com o latino chamado Carlos. Emma, a moça, é procurada pela irmã, Maddy, a amiga, Alice, e um pretendente de Alice, Rafael, rapaz vestido com um lençol, participante de uma espécie de festa à fantasia. Sean, Kunle e Carlos, temerosos de serem confundidos com abusadores, graças à polícia racista dos EUA, em vez de chamar a emergência, pegam o carro para levar Emma ao hospital. Mas a irmã de Emma os segue pelo localizador do celular.
Arquétipos desconstruídos
Temos, inicialmente, uma galeria de arquétipos que são mais ou menos desconstruídos durante o filme. Kunle é o rapaz de família, que frequenta as melhores escolas, não bebe, não fuma e se veste como “um professor substituto”. Sean tem um pé no tráfico de drogas, veste-se como um rapper e tem parentes e amigos envolvidos com o crime. Carlos vive jogando e chapado o dia inteiro. Estava no quarto, com fones de ouvido, e nem percebeu quando a moça entrou na sua casa. Kunle acha que Sean exagera na questão do racismo, enquanto Sean sugere que há um branco dentro de Kunle, que faz com que ele não perceba coisas óbvias.
Do outro lado, há possibilidades também, mas o diretor não parece disposto a segui-las. Maddy aparece como a típica patricinha, e terminará do mesmo jeito. Alice é um pouco mais nuançada, em contraposição à amiga, o que não é grande vantagem. Somente Rafael, por ser latino e primo de Carlos (para o indisfarçável espanto de Alice, num dos momentos mais interessantes do filme) revela-se um pouco melhor do que o habitual galã de festa dessas comédias universitárias.
“Quem é mais escuro que um saco de papel deve cair fora daqui”, diz Sean quando percebe que vai sobrar para os negros quando a confusão envolve também jovens brancos. Ele tem razão, e não precisa ser adivinho para saber que suas atitudes e seus temores, por mais tristes que pareçam, são inteiramente justificados.
O pior do filme é que para a confusão avançar, é necessário que uma série de bobagens aconteça, algumas até bem pensadas, outras meio forçadas, como a do rapaz urinando no totem sagrado de uma fraternidade ou a incapacidade de Carlos de estacionar um carro. Não custava muito pensar em soluções mais criativas para fazer avançar a trama.
Racismo estrutural
O melhor, disparado, é sua capacidade de chamar a atenção, para quem ainda não entendeu, e reforçar, para quem já é consciente, a existência do racismo estrutural na sociedade americana e a impossibilidade de conciliação total (um fechar de porta) entre pessoas discriminadas unicamente por causa da cor e pessoas que não conseguem imaginar o que seja essa discriminação. Só por esse motivo, e por o fazer de modo inteligente, Emergência merece ser visto.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
Emergência | Emergency | 2022 | 1h45min | EUA | Direção: Carey Williams | Roteiro: K.D. Dávila | Elenco: RJ Cyler, Donald Elise Watkins, Sebastian Chacon, Sabrina Carpenter, Maddie Nichols, Madison Thompson, Diego Abraham, Summer Madison.
Distribuição: Prime Video.