O blues de verdade sai da alma. E foi esse blues que um cineasta grego apoiado por franceses tentou encontrar e levar para as telas em 1972 em um filme antológico.
Le Blues entre les Dents (blues com dentes cerrados, em francês), que ganhou um título inglês – “Blues Under The Skin”, ou “Blues debaixo da pele”, em tradução livre e literal – não encontrou o blues que sai da alma de forma integral. Mas chegou bem perto, tornando-se uma pequena obra-prima.
O filme é interessante porque traz uma visão europeia não anglo-saxônica das origens e da antropologia do blues, um gênero que chegou a ser sequestrado pelos ingleses a partir dos anos 60 a ponto de ser tão indissociável das ilhas britânicas quanto do sul dos Estados Unidos.
É um documentário clássico sobre o verdadeiro blues americano, daqueles que nascem espontaneamente na boca dos esquecidos da sociedade americana.
Ficção e análise sociológica
Realizado pelo grego Roviros Manthoulis, a fita ficção se mistura muito subtilmente com a análise sociológica. Na impossibilidade de obter depoimentos crus e reais de negros nas plantações de algodão, o diretor buscou nos trabalhos forçados de prisioneiros negros do sul americano dos “tempos atuais” uma forma espontânea de cânticos de lamento que deram a origem ao gênero musical no tempo da escravidão, no século XIX.
Seriam cenas dos prisioneiros verdadeiras, com os cativos representando a si mesmos, ou também não apenas atores encenando?
As tramas que se passam em Chicago e Nova Orleans, essas sim não passam de ficção para demonstrar como o fosso social entre brancos e negros, nos anos 60 e 70, ainda era imenso, e como o blues permeava a existência da população urbana afro-americana desde sempre.
A alma do blues aparece em algumas cenas, principalmente no números musicais filmados de gente como Buddy Guy, Junior Wells e B.B. King. São cenas antológicas, registradas em locais pequenos, em um momento em que o blues lutava para recuperar o espaço perdido, ainda que os roqueiros ingleses tenham dado muita força.
Mesmo sem uma forte narrativa, as imagens e os depoimentos, fictícios ou não, compõe um mosaico de informações valiosas sobre como o blues moldou parte da alma americana e está de tal forma inoculado na corrente sanguínea dos negros americanos a ponto de ser uma característica indissociável dessa população.
Muita gente acredita que a música, entre todas as artes, costuma ser aquela que deixa o legado mais palpável e mais direto. Se é assim, o blues é um legando imenso de um dos povos mais criativos e sofridos que existem e existiram.
Texto escrito por Marcelo Moreira, publicado no site Combate Rock e aqui reproduzido mediante autorização.
___________________________________________
Ficha técnica:
Le Blues entre les Dents | 1973 | França | 88 min | Direção: Roviros Manthoulis | Roteiro: Roviros Manthoulis, Claude Fléouter | Com: Brownie McGhee, Sonny Terry, Robert Pete Williams, Mance Lipscomb, Furry Lewis, Junior Wells, Buddy Guy, B.B. King | Elenco: Amelia Cortez, Onike Lee, Roland Sanchez, Jimmy Huff, William L. Evans.
Le Blues entre les Dents foi um dos destaques do segmento “Flashback” da 15ª edição do In-Edit Brasil – Festival Internacional do Documentário Musical. A sessão no dia 25 de junho, no Cinesesc, teve apresentação do jornalista Marcelo Moreira, do Combate Rock (assista aqui).