“Legalize Já – Amizade Nunca Morre” conta a formação da banda de rap rock Planet Hemp, nos anos 1993/1994, quando os seus fundadores Marcelo D2 e Skunk se conheceram. Foi o momento mais dramático dessa trajetória, como o complemento do título já entrega. E é esse tipo de tragédia que justifica uma cinebiografia de um grupo musical. Afinal, se fosse somente um conto onde tudo dá certo, não haveria estória. Skunk já sofria as mazelas da AIDS nessa época, doença que o matou antes do lançamento do primeiro álbum do Planet Hemp.
O próprio Marcelo D2 trabalhou no argumento que originou o roteiro de Felipe Braga, o que resulta na credibilidade projetada na tela. Por isso, os trejeitos e gírias dos protagonistas Marcelo D2 e Skunk, interpretados por Renato Góes e Ícaro Silva, soam exatamente como eles deviam se expressar na vida real. O roteiro não exagera no nível de sucesso atingido pela banda, até porque se concentra apenas no seu pontapé inicial. Com isso, não dá indícios de que o Planet Hemp tenha atingido, em termos comerciais, o top hit do cenário musical. E isso fortalece o filme, mantendo a banda dentro do nicho mais radical que sempre se inseriu.
Planet Hemp
De fato, a própria trilha sonora, co-assinada por Marcelo D2, inclui majoritariamente músicas do próprio Planet Hemp e de bandas que o influenciaram. Presente em grande parte do filme, a trilha provoca um ritmo acelerado no filme, no mesmo compasso desse gênero musical. Assim, evita que a trama dramática se assemelhe a uma novela televisiva. A sequência do encontro entre os fundadores reflete esse pique.
Então, depois acompanhamos, em paralelo, um pouco da vida dos dois. Ou seja, Marcelo como camelô vendedor de camisetas de rock no calçadão do centro do Rio e Janeiro e Skunk fazendo coletâneas em fitas cassete. Eis que uma abordagem policial preconceituosa sobre o negro Skunk e o rapa atrás dos ambulantes inicia as perseguições que acabam num literal encontrão dos dois protagonistas, regado a música hardcore. A essencial coerência da trilha com a proposta dos músicos não provoca nenhuma ira dos fãs da banda. Pelo contrário, são convidados a curtir o filme com várias insinuações jocosas aos estilos que estouravam nas paradas da época, principalmente o axé e o pagode.
O tom emocional de “Legalize Já – Amizade Nunca Morre” é árido, em ressonância com a atitude protestadora do Planet Hemp. A vida dos personagens possui a dureza de uma vida à margem, vítima dos preconceitos sociais e raciais. De fato, são fracas opções de conseguir dinheiro em trabalhos fora do tradicional, e ainda complicada por doença e gravidez indesejada. Os atores não são celebridades, e nem suas imagebs glamurizadas para parecerem belíssimos na tela, o que facilita reconhecer os personagens como pessoas comuns. Essa aridez só é quebrada em alguns alívios cômicos nos diálogos, nas críticas aos outros gêneros musicais, na sequência do show na igreja.
Direção
A fotografia, de Pedro Cardillo, ousa filmar o tempo todo com tonalidade sépia, com cores desbotadas e acinzentadas. A ausência de cores fortes se alinha com a secura das vidas retratadas no filme. Essa tonalidade presente integralmente poderia tornar o visual cansativo, mas Cardillo evita isso variando momentos de maior ou menor intensidade das cores. Assim, registra imagens belíssimas, com o caminhar dos protagonistas em cima dos trilhos dos arcos da Lapa, primeiro em direção à câmera, depois se afastando dela. A reconstituição de época também merece elogios, se preocupando com detalhes com os antigos cobradores com as gavetas de dinheiro nos ônibus de linha.
O filme evita os clichês do cinema brasileiro sobre a cidade do Rio de Janeiro, onde a história se passa. Não há nem um segundo de praia e nem de favela, apesar de os personagens serem pobres. O enfoque é de uma Rio urbana, com os problemas da segunda maior cidade do Brasil. O teto do prédio onde Marcelo mora, seu refúgio para reflexões solitárias, não tem nada de tropical. Na verdade, se assemelha a um “rooftop” dos filmes rodados no Bronx em Nova York.
Os diretores Johnny Araújo e Gustavo Bonafé se saíram bem no desafio de levar para as telas o momento mais dramático da história, a morte de Skunk. E, mesmo considerando que é um fato já conhecido pelo público, mesmo pelos que não conhecem a banda, porque o subtítulo piegas “Amizade Nunca Morre” já entrega esse momento. Enquanto ouvimos a música do Planet Hemp, assistimos a uma montagem paralela, sem diálogos, do definhamento de Skunk devido à AIDS e da primeira turnê da banda pelo estado de São Paulo. Por fim, até o choro desesperado de Marcelo encoberto pelo som de uma chuva torrencial.
Representante de um nicho
Ademais, o filme mantém o Planet Hemp dentro do alcance que conseguiu obter. A banda não foi um megassucesso, mas é um dos mais importantes representantes dentro do seu nicho. Visualmente, entendemos que sua carreira deu certo quando surge no quadro um ambulante expondo camisetas do Planet Hemp para vender, ou seja, exatamente o que Marcelo fazia com bandas como Sepultura e Ratos do Porão.
Enfim, “Legalize Já – Amizade Nunca Morre” respeita a proposta do Planet Hemp. É um filme com atitude.
Curiosamente, o filme estreia dia 18/10, duas semanas antes da cinebiografia do Queen, “Bohemian Rhapsody”, que também conta sobre um talento dizimado pela AIDS.
Ficha técnica:
Legalize Já – Amizade Nunca Morre (2018) Brasil. Dir: Johnny Araújo e Gustavo Bonafé. Rot: Felipe Braga. Elenco: Renato Góes, Ícaro Silva, Ernesto Alterio, Marina Provenzzano, Stepan Nercessian, Rafaela Mandelli, Shirley Cruz.