O diretor espanhol Pedro Almodóvar tornou-se, há alguns anos, uma espécie de grife autoral. Já em 2004, Inácio Araujo advertia: “Bem, é verdade que se engole um melodrama, desde que venha de Almodóvar. Mas aí é Almodóvar, não é melodrama, se é que dá para seguir o raciocínio. O critério de autoridade parece muitas vezes determinar nosso prazer.”
Sim, dava e dá para seguir o raciocínio. Almodóvar virou, mais que Woody Allen ou Lars Von Trier, uma espécie de régua que o gosto médio aprova como sinal de sofisticação, por mais que Almodóvar tenha buscado driblar o gosto médio, mais ou menos como Verhoeven, mas sem o mesmo sucesso. Por isso, muitas vezes seus filmes caem no gosto antecipado de muitos, ou no desgosto a priori de outros tantos, mesmo que ele seja capaz de fazer uma pérola como A Pele que Habito (2011) e logo em seguida uma bomba como Amantes Passageiros (2013).
Seu longa mais recente é distribuído pela Netflix, que engrossa seu catálogo com obras de prestígio, após Roma (Alfonso Cuarón, 2016), O Irlandês (Martin Scorsese, 2019) e A Filha Perdida (Maggie Gyllenhaal, 2021), que foram produzidos pela própria empresa de streaming. Felizmente, Almodóvar estava inspirado e realizou um filme claramente superior a esses e certamente um dos melhores de sua carreira. Talvez porque, controlando a produção, tenha conseguido se livrar das armadilhas do dinheiro fácil da gigante do streaming. Mesmo chegando rapidamente à Netflix, após uma janela curta, duas semanas após a estreia nos cinemas brasileiros, este filme tem apenas a distribuição (o que é muito, talvez até o principal, mas não é tudo) da nova grife autoral que agora é maior que a de Almodóvar.
A trama
A protagonista de Mães Paralelas é a fotógrafa profissional Janis (Penélope Cruz), mulher de quase 40 anos que se envolve com Arturo (Israel Elejalde), um arqueólogo que foi modelo em um de seus trabalhos, e engravida. Na maternidade, Janis (nomeada porque a mãe, hippie, amava Janis Joplin) divide o quarto com Ana (Milena Smit). Ambas entram em trabalho de parto ao mesmo tempo e por isso tornam-se amigas.
Arturo não queria ter filho neste momento, então eles se separam. Janis cria Cecília, sua filha, sozinha. Antes disso, Arturo tinha ficado de tentar uma escavação no povoado dos antepassados de Janis, boa parte deles desaparecidos na Guerra Civil Espanhola. Está armada então a estrutura deste melodrama que Almodóvar filma durante um bom tempo como um suspense, mas que desemboca num acerto de contas político anti-fascista. Trata-se de fato de um trabalho de arqueólogo: encontrar corpos da mesma maneira que se confirmam laços de sangue. Escavação da verdade, de um passado distante e de um passado recente.
Suspense a partir de elementos melodramáticos
Os ingredientes de um dramalhão estão todos aqui: paternidade (e maternidades) questionada, morte prematura, abandono familiar, passado encoberto, choque geracional, entre outros motivos de inspiração. Almodóvar os trabalha como um mestre, desenvolvendo a trama como se pudesse ir para qualquer lado, deixando-nos sem saber como será a próxima sequência, a próxima cena, o próximo plano.
O jogo com elipses é preciso, faz com que da trama tenhamos apenas o essencial. Num dos poucos momentos em que a ordem cronológica dos acontecimentos é desrespeitada, temos uma interessante representação da ansiedade da protagonista ao receber aquele que pensa ser o pai de sua filha, meses (talvez mais de um ano) após eles terem se separado. Quando Arturo pede um exame de DNA porque intui que não é o pai, Janis fica ofendida, e com razão. Se ela diz que só esteve com um único homem no período da concepção, e ele não acreditou nela, é porque nunca a amou. Só que as coisas podem não ser tão simples em um filme do cineasta, e Arturo terá uma atenuante importante logo adiante.
Almodóvar cria suspense a partir de elementos melodramáticos, familiares, afetivos. E nos envolve até o fim em uma trama que aparenta ser corriqueira, de qualquer um e de qualquer lugar. O filme às vezes parece prestes a sair dos trilhos, mas o risco faz parte de sua poética.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
Ficha técnica:
Mães Paralelas | Madres Paralelas | 2021 | 123 min | Espanha | Direção e roteiro: Pedro Almodóvar | Elenco: Penélope Cruz, Rossy de Palma, Milena Smit, Aitana Sánchez-Gijón, Daniela Santiago, Israel Elejalde, Julieta Serrano, Ainhoa Santamaría, Pedro Casablanc.
Distribuição: O2 Play / Netflix.