Experiente como ator e diretor, Cédric Kahn tem cacife de sobra para fazer um filme sobre o metacinema. Seu décimo-oitavo longa. Cinema é uma Droga Pesada (Making Of), possui como linha narrativa principal as filmagens de uma produção que pode ser interrompida porque perdeu parte substancial de seu financiamento. Juntos com os contratempos e as alegrias do dia a dia dos bastidores, há espaço para os dramas pessoais dos dois personagens principais, e para a crítica ao capitalismo.
Filmes sobre filmes facilmente agradam quem ama o cinema. Alguns deles são obras-primas indiscutíveis, como A Noite Americana (La Nuit Américaine, 1974), de François Truffaut. Outras, pérolas do cinema independente, como Vivendo no Abandono (Living in Oblivion, 1995), de Tom DiCillo, título citado pelo próprio Cédric Kahn em entrevista ao Leitura Fílmica, na sua passagem pelo Brasil durante o Festival Varilux 2023. Cinema é uma Droga Pesada está abaixo desses dois, mas certamente acima da média.
Ataque ao capital
O filme ataca o capitalismo em duas frentes. Uma, no filme dentro do filme, que adapta um episódio real sobre trabalhadores que ocupam a fábrica por melhores condições, propondo uma autogestão mais justa. Uma das operárias, Oudia (Souheila Yacoub), chega a sugerir que o salário seja proporcional à necessidade de cada um. Ou seja, quem é solteiro, recebe menos, quem é arrimo de família, recebe mais, e assim por diante. A outra frente denuncia o capitalismo dentro da indústria do cinema. Não há novidade nisso, mas a trama traz financiadores exigindo um final feliz, mais comercial, caso contrário eles retiram o investimento. Diante disso, o diretor do filme, Simon (Denis Podalydès), decide não alterar o final dramático, e daí surge o risco de fechar a produção antes de concluídas as filmagens.
O drama pessoal marca o arco do personagem Simon. A vida nos sets o distancia da família (a esposa e os dois filhos), e um divórcio parece iminente. Cogita que esse seja o seu último filme, pois já se sente esgotado. Por isso, resolve registrar um making of das filmagens. Contrata, então, um entusiasmado pretendente a cineasta, Joseph (Stefan Crepon), para filmar esses bastidores. O enredo abre espaço para esse personagem, que divide o protagonismo com Simon como se fossem duas versões (uma mais jovem e uma mais velha) da mesma pessoa. A vida íntima de Joseph também ganha os holofotes. Ele quer largar o trabalho na pizzaria da família e viver de cinema – enquanto isso, Simon já quer retornar para casa.
Pausas entre o movimento
O enredo é movimentado. Sempre algo está acontecendo, seja no filme dentro do filme, ou na realidade. Há sempre uma forte tensão no ambiente – não só pelas explosões do ator temperamental Alain (Jonathan Cohen) e de seu personagem, mas também outras situações como a falta de pagamento, as discussões de relacionamento, a luta de egos etc. Por isso, são bem-vindos alguns alívios cômicos no humor cínico que surge quando se ultrapassa os limites do verossímil. São poucos esses instantes, e não há certeza se devemos ou não rir. Já os frequentes fade-outs permitem um confortável alívio de descanso entre os diversos acontecimentos.
Cinema é uma Droga Pesada não inova, mas apresenta com consistência o que propõe. Ao final, saímos da sala de projeção com uma noção ainda maior sobre esse duro ofício de diretor de cinema, bem como de todos os outros membros de uma equipe de filmagem. E, como a maioria dos filmes sobre cinema exalta, é preciso muito amor para continuar nesse ramo, apesar do capitalismo que quer dominar a tudo e a todos, sem nenhuma sensibilidade.
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Ficha técnica:
Cinema é uma Droga Pesada | Making Of | 2023 | 119 min | França | Direção: Cédric Kahn | Roteiro: Cédric Kahn, Fanny Burdino, Samuel Doux | Elenco: Denis Podalydès, Jonathan Cohen, Emmanuelle Bercot, Stefan Crepon, Souheila Yacoub, Xavier Beauvois, Valérie Donzelli, Orlando Vauthier.
Distribuição: Bonfilm.