Mal Nosso é um dos filmes de terror mais surpreendentes dos últimos anos. E é uma produção brasileira.
Escrito e dirigido por Samuel Galli, Mal Nosso se afasta da fórmula batida dos sustos seguidos de sustos que o gênero tem apresentado há mais de duas décadas. E essa opção alternativa tem agradado ao público, como provou o recente A Freira, que alcançou o topo dos rankings no ano passado. Claro, o recurso dos sustos não está totalmente ausente em Mal Nosso. Pelo menos em quatro cenas a aparição surpresa de algum ente macabro faz o público saltar na poltrona. Mas, as maiores qualidades do filme ultrapassam esse truque.
Diferenciado
O roteiro em si já representa um diferencial, em sua estrutura, seu ritmo, sua mensagem e seu desfecho, pecando apenas em algumas linhas dos diálogos. Por sinal, os dez minutos iniciais não contêm nenhuma fala, sejam diálogos ou narrações. Dessa forma, a contratação pela internet de um assassinato sob encomenda pelo protagonista Arthur é narrada visualmente, respeitando a cartilha dos cineastas mais puristas. Nessa sequência, a cena mais gore do filme choca o espectador pela violência brutal com a qual o assassino contratado por Arthur arranca o escalpe de uma moça em um vídeo que o próprio serial killer grava e coloca na dark web.
Assim, o diretor Samuel Galli repete o que Hitchcock usou em Psicose (1960). Ou seja, coloca uma cena extremamente forte na parte inicial do filme, para que, posteriormente, não seja mais necessário mostrar outra equivalente. Afinal, o próprio público, lembrando da visão horrível anterior, passará a usar inconscientemente sua imaginação.
Vítimas humanizadas
A narrativa se desloca, então, para o psicopata que Arthur contratou. Os dois se encontram em um bar, e fazem um combinado. Depois que Arthur vai embora, duas garotas de programa abordam o assassino, e oferecem sexo em troca de dinheiro e um lugar para passar a noite. Então, o desfecho esperado demora a acontecer, porque, ao contrário de franquias como Halloween e Sexta-Feira 13, as vítimas aqui são humanizadas. Enquanto dançam no bar, as duas jovens trocam juras de amor e esperanças de uma vida melhor, e isso induz o espectador a se solidarizar com elas quando são atacadas pelo serial killer. Aliás, tal referência está conectada com o tema central do filme, o embate entre o bem e o mal.
No final do primeiro ato – considerando a tradicional divisão do roteiro em três atos – Mal Nosso apresenta na tela uma cena arrebatadora. O diretor a constrói com maestria, com um timing perfeito para surpreender o público e mover a estória para outro rumo. Se algum espectador não entendia o ritmo lento de algumas situações que aparentemente não moviam a estória para frente, essa cena explica tudo.
As três fases do terror
O filme acompanha a juventude de Arthur, quando começou a se descobrir médium. A evolução de seu comportamento frente às aparições do além pode ser descrita em três fases. Primeiro, o pavor (como em A Morte do Demônio) e o desconhecimento (O Sexto Sentido), depois, a compreensão e vontade de ajudar (tal qual a série Ghost Whisperer), e, por fim, o enfrentamento (O Exorcista). Depois´, o desfecho encerra o arco da estória definitivamente, algo não muito comum desde que as seqüências viraram estratégia de marketing, porém que torna Mal Nosso único também nesse sentido.
A produção
O orçamento reduzido de apenas R$ 350 mil reais não impediu que o filme funcionasse, mesmo pertencendo a um gênero fantástico. Aliás, Jason Blum, da Blumhouse, é uma prova viva de que o terror é o gênero que melhor se adapta a produções econômicas. Em Mal Nosso, a opção por efeitos especiais (maquiagem) ao invés de visuais (computação gráfica) é um dos motivos, e duas criaturas horrendas aterrorizam o público eficazmente. Adicionalmente, os efeitos de som contribuem com o visual e são um dos destaques do filme, como comprova o grito do demônio ao encarar Arthur, as facadas na garota de programa e, claro, os tiros do assassino de aluguel. Além disso, esses recursos são embalados por uma trilha sonora eletrônica que cria o ambiente soturno do filme, lembrando as composições do também diretor John Carpenter, mestre do horror norte-americano.
Em suma, Mal Nosso comprova que qualidade não vem do orçamento, mas do talento. Samuel Galli sabe o que faz. Por isso, merece ser aplaudido de pé.
Por fim, a distribuidora O2 Play e a produtora Kauzare Filmes levaram Mal Nosso para o circuito dos festivais internacionais, antes de lançá-lo no circuito dos cinemas brasileiros. Como resultado, o longa entrou na seleção de mais de 14 eventos por todo o mundo.
Confira aqui nossa entrevista com o diretor Samuel Galli.
Ficha técnica:
Mal Nosso (2019) Brasil. 83 min. Dir/Rot: Samuel Galli. Elenco: Ademir Esteves, Ricardo Casella, Antony Mello, Luara Pepita, Fernando Cardoso, Walderrama dos Santos, Gabriela Grecco, Thais Prates, Shirley Viana, Sonia Moreno, Maria Clara Gonçalves, Mari Galves, Nicole Silva, Reinaldo Colmanetti, Maysa Pettes, William Salles.
Distribuição: O2 Play