Uma coisa está acertada no release da Mubi. Radu Jude é uma das vozes mais criativas do cinema contemporâneo. Quanto a isso, não há dúvida. Não Espere Muito do Fim do Mundo, seu último longa, talvez seja, de todos que realizou, o que melhor exemplifica essa afirmação.
Em quase três horas de duração, encontra-se de tudo neste filme, até mesmo talento. Passamos boa parte desse tempo no carro com Angela, personagem de Ilinca Manolache. Vemos a moça sendo xingada por homens, numa clara demonstração de que machismo não é exclusividade latina; mostrando o dedo do meio ou reclamando de alguma coisa nas ruas de Bucareste; entrevistando pessoas que sofreram acidentes e tiveram suas vidas modificadas por isso; transando com um homem de meia idade, para quem pede dinheiro emprestado, sugerindo algo parecido com prostituição; cuspindo no prato de salgados que irá servir a clientes chatos.
Vez ou outra faz vídeos com filtro no rosto, interpretando um personagem desbocado que comenta jocosamente as coisas estranhas que vê pelas ruas, com sobrancelhas grossas e barbicha. Esses momentos dos vídeos são bem interessantes. Por vezes vemos só a atriz falando ao longe, em outras já vemos o resultado do filtro que cria o personagem. No início, os vídeos surgem como um ruído, como uma intervenção indesejada no filme que estamos vendo. Tanto que na primeira meia hora não temos a menor ideia de como o filme irá se desenvolver. E quando passamos a ter, ele muda novamente, entra em um outro esquema, como na filmagem do institucional no final.
Não Espere Muito do Fim do Mundo é um filme que, de imediato, anuncia o diálogo com um outro filme de 1981, intitulado Angela Merge Mai Departe e dirigido por Lucian Bratu. A protagonista desse filme antigo é a atriz Dorina Lazar, que participa em Youth Without Youth, de Coppola, e volta ao novo filme de Radu Jude vivendo a mesma personagem, agora idosa e sendo vítima também de um acidente de trabalho. Curto-circuito. Entendemos que o diálogo com o filme antigo será maior do que pensávamos de início, quando víamos as imagens manipuladas pela nova edição.
De fato, o aspecto documental deste longa de Radu Jude está em, no mínimo, três camadas. A primeira está na linguagem, na câmera observacional que se perde com Angela pelas ruas de Bucareste. A segunda é a introdução ou menção, no filme, de pessoas reais ou dados que podemos entender como factuais, como a entrevista com o diretor fanfarrão Uwe Boll e as cruzes ao redor de uma estrada muito perigosa, evocadas numa conversa dentro do carro com a personagem de Nina Hoss. A terceira camada é o filme antigo, que pelo deslocamento e comparação, surge como um documentário de como era Bucareste no início dos anos 1980, sob o governo do ditador Nicolae Ceausescu.
Radu Jude administra essa aparente desorganização visando deixar seu filme o mais livre possível, podendo transitar de um registro a outro sem que o espectador se situe sobre o tipo de filme que está vendo. A ideia, não muito bem-sucedida, é fazer uma revolução fílmica e política capaz de mover estruturas. Enquanto ele não consegue fazer isso, vamos nos deleitando com os melhores momentos de suas tentativas.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
Não Espere Muito do Fim do Mundo | Nu astepta prea mult de la sfârsitul lumii | 2023 | 163 min | Romênia, Luxemburgo, França, Croácia, Suíça, Reino Unido | Direção: Radu Jade | Roteiro: Radu Jade | Elenco: Ilinca Manolache, Ovidiu Pîrsan, Nina Hoss, Dorina Lazar, László Miske, Katia Pascariu, Sofia Nicolaescu.
Distribuição: MUBI.