O Acidente traz o drama humano urbano para as telas. Por isso, embora filmado em Porto Alegre, lembra o cinema do cineasta iraniano Asghar Farhadi. São histórias com personagens humanizados, ou seja, que até induzem ao maniqueísmo, mas que levam à conclusão de que todos cometem erros e acertos.
A narrativa se inicia com uma discussão no trânsito. Joana (Carol Martins) se locomove em sua bicicleta nas ruas congestionadas da hora do rush. Mas leva uma fechada de um carro e, quando o semáforo fica vermelho, ela vai tomar satisfações. O que se segue é um desses absurdos do cotidiano nas cidades grandes. A motorista, irritada, acelera o carro e carrega Joana no capô do seu veículo, até derrubá-la. O passo seguinte seria registrar um boletim de ocorrência e depois uma ação judicial. Esse processo se inicia, mas o filme o interrompe para apresentar melhor os personagens envolvidos.
Os personagens
Assim, revela que Joana é casada com Cecília (Carina Sehn), e está grávida (o que justifica a cena do vômito neste filme, já que esse ato virou obrigatório no cinema contemporâneo). A motorista é Elaine (Gabriela Greco), que passa por uma crise de instabilidade emocional, segundo conta seu ex-marido Cléber (Marcello Crawshaw), de quem se separou recentemente. A crise conjugal ecoa no filho deles, o extremamente tímido Maicon (Luis Felipe Xavier), que filmou e postou o incidente no trânsito e postou no seu canal de vídeos.
A princípio, o filme permite que coloquemos uma definição padronizada para cada um desses personagens. Mas, conforme a trama avança, mais camadas surgem em relação a suas personalidades, derrubando, ou melhor, acrescentando mais características a essas pessoas. Nesse sentido, Cecília não é a boa moça por completo – ela se mostra autoritária com sua médica e desleal com sua parceira ao exigir saber o sexo do bebê, e pode mentir sobre sua gravidez na enigmática parte final. O hermético garoto, por sua vez, revela sua sensibilidade nos vídeos que posta em seu canal.
Elipses
Em sua estreia na direção de longa-metragem, Bruno Carboni também se deixa influenciar por Asghar Farhadi ao empregar muitas elipses. Dessa forma, deixa fora da tela as cenas mais dramáticas. Por exemplo, não vemos Joana contando para Cecília sobre o acidente, nem a médica dando uma notícia ruim, entre outros trechos ausentes.
Mas a maior elipse esconde o lapso de tempo que transcorre entre a absorção do que acontece com o bebê de Joana até a festa de 12 anos de Maicon. O aniversário vem logo em seguida, ou após vários dias ou até meses? A dúvida surge porque Joana diz que está grávida há treze semanas, os pais de Maicon estão juntos novamente, e o menino já está matriculado na escola militar. Mas o que aconteceu nesse ínterim não sabemos, ficou na elipse que o filme optou por não mostrar.
Além das elipses, Bruno Carboni também deixa fora da tela os rostos dos personagens, que ficam fora do enquadramento em algumas cenas. Ao que parece, para indicar a desumanização das pessoas, que faz parte das mensagens da obra.
A mensagem e a bandeira
Após esse estranhamento, vem uma conclusão inesperada, novamente remetendo a Farhadi. O ato surpresa de Joana parece questionar a falta de empatia geral que as pessoas sentem uma pela outra. Essa mensagem conclui com força o filme, que em alguns momentos se perde, deixando a narrativa de lado para levantar a bandeira LGBTQIA+, na fala preconceituosa de Cecília (“Será que ele [Maicon] é igual a você?”) e na evidente crítica aos militares (profissão de Cléber), lembrando que o filme foi rodado em 2019, no primeiro ano do mandato de Jair Bolsonaro.
O medo de uma direita extremista dominar o país existia e era realmente válido protestar contra, mas aqui interfere na história, até jogando contra a proposta de humanizar os personagens. Mas, independente do motivo, O Acidente desperdiça o desenrolar do incidente grave que dá início ao enredo. E perde o rumo do que seria essa instigante história de “um cidadão comum diante de uma situação complicada”, como o personagem Maicon intitularia um vídeo seu.
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Ficha técnica:
O Acidente | 2022 | Brasil | 95 min. | Diretor: Bruno Carboni | Roteiro: Marcela Ilha Bordin, Bruno Carboni | Elenco: Carol Martins, Carina Sehn, Luis Felipe Xavier, Gabriela Greco, Marcello Crawshaw.
Distribuição: Atelier W.
Trailer: https://vimeo.com/660415401
(cartaz/divulgação: Lídia Brancher – foto/divulgação: Glauco Firpo)