Ainda me lembro da primeira vez que fui impactado por um filme de Andrzej Żuławski. Aliás, nem filme era. Tratava-se, como viria a descobrir, de um frame de O Globo de Prata (1988), que me gerava inquietação. Começando minha jornada na cinefilia, devorei com voracidade os três filmes mais conhecidos do diretor. Além do longa supracitado, também vi Possessão (1981) – que figura nas minhas listas de favoritos desde então – e O Diabo (1972), que será foco da crítica de hoje.
Andrzej Wajda e A Terça Parte da Noite
Assim como fiz no meu comentário sobre Macunaíma, acho interessante fazermos uma breve contextualização.
Seu primeiro curta-metragem é La Sorcière (1958), feito em Paris e baseado em um conto de Tchekhov. Não está disponível para o público geral – apesar de preservado nos arquivos do IDHEC.
Durantea década de 1960 Żuławski foi assistente de direção do aclamado Andrzej Wajda. Além disso, orquestrou outros dois filmes de curta duração, Pavoncello (1967) e Story of Triumphant Love (1969).
Viria então seu primeiro longa-metragem, o decente A Terça Parte da Noite (1971). Ambientado na Polônia ocupada pelos nazistas – onde o diretor nasceu – o filme conta a história da decadência mental de um homem que testemunha o assassinato de sua mulher, sua mãe e seu filho. O longa é tomado pelo estado delirante de seu protagonista.
Muito me impressiona o controle de linguagem e encenação do realizador, que parece estar totalmente consciente do que quer atingir; diferente de outros diretores que precisam trilhar certo caminho para encontrar seu estilo particular; o filme de estreia de Żuławski já é um belo exemplar de sua visão de cinema: violência, expansividade, intensidade e visceralidade.
Sua segunda película de longa duração é O Diabo,que me dedicarei a destrinchar a seguir. Porém, acho digno de nota que o filme em que essa crítica é dedicada foi proibido na Polônia Comunista – o que acarretou que o diretor voltasse à França.
A forma do filme
O longa tem parte de sua proposta estética já exposta nos primeiros planos. A câmera alterna entre um homem vestido de preto percorrendo uma prisão durante a invasão do exército prussiano à Polônia, e sua visão subjetiva dos acontecimentos que testemunha.
O espectador tem contato com o desconforto quase que de imediato, seja com a interpretação extrusiva dos atores que encaram a câmera com uma intensidade deveras assustadora (o que se repetiria muito em O Globo de Prata), seja através da própria escolha de linguagem: a profundidade de campo que dificilmente sai do primeiro plano, mas a movimentação de câmera e a decupagem sempre evidenciam com certa persuasão o que acontece ao redor (segundo e terceiro plano sempre abarrotados por informação, nos jogando sempre na natureza caótica do mundo retratado).
A câmera inquieta – e que gera inquietude – não é só fluida se movimentando no espaço de encenação, mas também ao se movimentar para mostrar o que em uma linguagem cinematográfica padrão se mostraria em closes. Em plano único o diretor coloca as expressões faciais e corporais dos atores, suas ações, e aproxima ou direciona a lente de pequenos detalhes para entendermos melhor o que se passa.
Não se trata de um filme com muitos planos longos. Mas, através da decupagem e da densidade da encenação, às vezes temos a sensação que o plano dura muito mais do que objetivamente acontece.
Claridade escura
O que sempre me intrigou nesse longa é que ele se passa predominantemente de dia. Mesmo as cenas internas noturnas tem uma claridade bem específica. Ao mesmo tempo, é um filme escuro. Parece paradoxal. Não digo escuro no sentido figurado, melancólico (apesar de também ser o caso).
Os personagens são acaçapados por um céu branco sem vida, pela neve que cobre o chão, ou pela névoa que os circunda. Mesmo de noite, nas cenas externas, parece mais que Żuławski apenas abaixa o ISO agressivamente – é apenas uma impressão, não sei se é o caso – com um escuro disforme, do que ilumina a cena com a iluminação convencional do luar.
A floresta em que se passam sequências importantes é, no entanto, escura. As árvores são de um preto assustador, quase sombras de si mesmas. A beleza natural inexiste. Os figurinos de cor clara ficam lavados, sem textura; os pretos são evidenciados, espessos.
Performance como expurgo
Ao se pensar em Żuławski se evoca, como tão repetido acima, a intensidade de sua encenação. Os atores que trabalham com o diretor dependem de um nível de entrega corporal (e espiritual) extraordinária.
Nesse sentido, é possível aproximar (mas apenas por esse ângulo) Żuławski do cinema marginal brasileiro, sendo a obra de Rogério Sganzerla como possibilidade de paralelo.
Nesse sentido, em Copacabana Mon Amour (1970), o personagem interpretado por Otoniel Serra come velas acesas, engole areia, rola no lixo, berra no meio da praia, se expõe… claro que as propostas por trás da encenação são diferentes, mas o resultado não é tão diferente – apesar de em O Diabo o apelo sexual ser bem menos latejante que no filme nacional.
Nos filmes do polonês a performance é expurgo, é tentativa de exteriorizar os males internos; não é busca efusiva por catarse, mas sobrevivência do interior através da excreção externa. É tentar expelir o delírio. E inevitavelmente ser absorvido por ele.
Texto escrito pelo crítico e universitário de cinema Enrico Mancini, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
O Diabo | Diabel | 1972 | Polônia | 119 min | Direção e roteiro: Andrzej Żuławski | Elenco: Leszek Teleszynski, Wojciech Pszoniak, Malgorzata Braunek, Iga Mayr, Anna Parzonka, Michal Grudzinski, Maciej Englert.