O gendai geki O Escândalo aborda um tema mundialmente pertinente para a sua época: a imprensa sensacionalista. No enredo, um paparazzi fotografa o pintor Aoye (Toshiro Mifune) e a cantora Miyako (Yoshiko Yamaguchi, que depois adotaria o nome artístico Shirley Yamaguchi, e atuaria em A Intrusa [1952], de King Vidor), que mal se conheciam, numa varanda de hotel. O inescrupuloso editor da revista sensacionalista, para quem o fotógrafo trabalha, publica a foto destacando-a como um flagrante de um caso da famosa cantora. Indignado, Aoye processa o jornal, mas escolhe como seu advogado o trambiqueiro Hiruta (Takashi Shimura).
Uma ponte entre Kurosawa e Wilder
Neste filme, Akira Kurosawa se aproxima do cinema de Billy Wilder, que abordou a imprensa no venenoso A Montanha dos Sete Abutres (1951) e no crepuscular A Primeira Página (1974). A semelhança se faz notar na comicidade que permeia o longa de Kurosawa, principalmente na primeira metade, na rapidez que resulta da sua decupagem, no uso do disfarce (o personagem Hiruta) e no inevitável romance (só sugerido, mas sem deixar dúvidas de que rola um clima entre Aoye e Miyako).
Os eventos se sucedem com muita rapidez, pois as cenas são curtas, autoexplicativas, tanto na narrativa quanto na definição do caráter dos personagens. O acelerado processo da imprensa é acompanhado por uma trilha musical frenética, que possui uma linha melódica muito parecida com a “Dança de Sabre” (em “Gayaneh” de Aram Khachaturyan) usada ostensivamente por Wilder em Cupido Não tem Bandeira (1961).
Como descanso para esse ritmo intenso, há o engraçado trecho no qual Aoye invade a redação da revista. Só assim ele consegue acesso à publicação com o artigo que fala dele e de Miyako, pois a revista está esgotada nas bancas. Kurosawa filma os rostos dos funcionários da editora com expressões apreensivas esperando a reação do pintor. Este, por sua vez, leva bastante tempo lendo a matéria com muita atenção. Tal demora intensifica o suspense. O desfecho é uma explosão física típica de Toshiro Mifune nas telas. Mas, aqui numa proporção decimal do que ele pode fazer em outros papéis mais bombásticos na própria obra de Kurosawa.
Takashi Shimura
O tom cômico aparece logo no início do filme, nos três divertidos camponeses que rodeiam Aoye enquanto ele pinta as montanhas. E, na primeira metade da história, a malandragem de Hiruta também abre oportunidades para o humor. Por exemplo, ele entra em cena, praticamente invadindo a casa de Aoye. Todo atrapalhado, fala sem parar e sem nenhuma cerimônia, enquanto se apresenta profissionalmente para ser o advogado de Aoye no processo judicial.
Por falar em atuação, graças ao espantoso talento de Takashi Shimura, o advogado não só provoca risos como também lágrimas. Assim, no final do filme, num momento redentor, o seu personagem admite sua desonestidade, afirmando que “engana para não ser enganado”. Essa constatação, acrescida da percepção de Aoye de que Hiruta não é mau, é apenas fraco, levanta uma conclusão muito forte em relação ao caráter das pessoas. Por sinal, o desempenho patético de Hiruta durante o julgamento ganha um outro significado diante desse pensamento. Quando ele consegue superar sua fraqueza e tomar uma atitude corajosa, Hiruta muda o seu caráter, pelo menos para aquele instante, quem dera para o resto da sua vida. Emblematicamente, nessa cena redentora o advogado aparece em primeiro plano, à frente dos demais personagens.
Ainda sobre Hiruta, em sua casa se encontra o maior drama de sua existência, que é, ao mesmo tempo, sua maior alegria e, por que não, sua tábua de salvação. Trata-se de Masako (Yoko Katsuragi), a sua filha adolescente que há seis anos está convalescendo na cama com tuberculose. Masako é uma figura angelical, a personificação do Bem. Sua existência é que convence Aoye a contratar Hiruta, quando foi procurá-lo na sua casa, num bairro pobre que tem um lago sujo como centro – cenário parecido, talvez o mesmo, do filme O Anjo Embriagado (1948).
O revèillon no bar dos perdedores
Numa cena engrandecedora, Hiruta chega bêbado em casa, após fazer acordos sujos com o editor do jornal, e vê, em cada quadradinho da parede da sua casa (aquelas paredes fechadas com papel, típicas no Japão) sua esposa, Masako, Aoye e Miyako. Ele permanece no corredor, sem coragem de entrar. Sente que não pertence àquele grupo de pessoas boas.
Um pouco adiante, Aoye acompanha Hiruta a um bar, onde as pessoas celebram a passagem do ano. Nessa reunião de perdedores, todos choram, muito embriagados, pensando em mais um ano que passou e que desperdiçaram. Alguns prometem que se comportarão de forma diferente no ano que está chegando. Mas, a voz entorpecida já entrega que são palavras vazias. Cantam “Hotaru no Hikari”, tradicional canção de passagem de ano, em meio às lágrimas – difícil não conectar com Takashi Shimura nos antológicos trechos em que canta no belíssimo Viver (1952). Do engraçado ao triste, esse ator sempre contagia o público. Neste O Escândalo, já havia emocionado com sua expressão melancólica nos trechos em que visita a sua filha. Mas, nessa cena do réveillon no bar dos perdedores o efeito é catártico.
O capricho de Kurosawa
Toshiro Mifune se adequa a seu personagem, desta vez mais contido e racional. De bem com a vida, mas não um tolo que se cala ao ser explorado pela imprensa. O ator se coloca nas mãos da genialidade de Kurosawa que encontra soluções hábeis para expressar as emoções desse tipo de personagem. Assim, quando Aoye sente indignação com o rumo do julgamento, ao invés de esbravejar (como Mifune faz em Rashomon [1950], por exemplo), ele sobe na sua moto e a acelera ao máximo, provocando um barulho ensurdecedor dentro de seu estúdio. Como capricho adicional, a cena termina com uma enorme ventania, recurso da força da natureza tão característico na obra do diretor.
Para terminar, a última cena merece registro. Hiruta caminha pela calçada, e atrás dele, na parede de um edifício, cartazes de propaganda com a capa da revista daquela edição da discórdia se rasgam em pedaços levados pelo vento. Com isso, Kurosawa aponta a brevidade das notícias de fofocas. Ou seja, quando o julgamento enfim termina, a matéria já caiu no esquecimento.
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Ficha técnica:
O Escândalo | Shubun | 1950 | 104 min. | Japão | Direção: Akira Kurosawa | Roteiro: Akira Kurosawa, Ryuzo Kikushima | Elenco: Toshiro Mifune, Takashi Shimura, Shirley Yamaguchi, Yoko Katsuragi, Noriko Sengoku, Eitaro Ozawa, Shin’ichi Himori, Ichiro Shimizu, Fumiko Okamura, Tanie Kitabayashi.