A diretora Lúcia Murat retoma em O Mensageiro um tema recorrente em sua carreira: os horrores da ditadura militar no Brasil. A escolha parte de sua própria experiência. Vítima da repressão, passou três anos na prisão no início dos anos 1970. Desta vez, surpreende ao mostrar o lado dos torturadores, o que só fica evidente na parte final, quando a diretora aparece na tela ministrando uma aula sobre Hannah Arendt.
A princípio, parece que o filme se concentrará na história de Vera (Valentina Herszage), jovem militante da esquerda que é encarcerada numa prisão militar no Rio de Janeiro. Após sofrer uma tortura que estropia sua perna direita, ela agora está numa solitária. A mise-en-scène retrata poderosamente as duras condições do cárcere. Numa cena, Vera come pequenos pedaços de pão embolorado, tomando cuidado para guardar porções para os próximos dias. Dorme no chão de uma cela escura e úmida. A trilha sonora realça o tom sinistro.
Então, surge na trama o personagem Armando (Shico Menegat), um soldado novato que alivia a fome de Vera dando-lhe alguma comida às escondidas.
As escolhas dos pais
Em paralelo, o filme mostra o efeito que essa prisão causa nos pais de Vera. Na primeira cena com o casal, a filha está sumida. O pai, Henrique (Floriano Peixoto), come a sobremesa, mas a mãe, Maria (Georgette Fadel), não consegue pensar em mais nada além da filha. Desde aí, fica nítido que o casal assume reações díspares entre eles. Numa bela associação de símbolos, Maria pousa seus olhos sobre as tranças de massa sobre a torta que está na mesa, como se pressentisse que a filha está atrás das grades.
Apesar de Maria ser uma beata conservadora, logo ela assume os riscos de procurar pela filha nos quartéis. Enquanto isso, o pai, que ajudara antes a filha a fazer um aborto, tem medo de se envolver com os militares. E o seu receio se justifica, como mostra o que acontece com o padre da igreja que sua esposa frequenta. Mas, apesar de ter motivo, o filme critica sua atitude covarde, incapaz de se arriscar pela sua própria filha.
A escolha de Armando
A presença de Armando aumenta conforme o enredo avança. Diferente dos seus colegas do exército, ele não consegue normalizar a prática de tortura. Por isso, ganha o apelido de Catarina – não só por ser do Sul do Brasil, mas pejorativamente como se fosse uma maricas. Aliás, o machismo também aparece no trecho em que o pai argumenta que ele pode ter um caso extraconjugal. Além de tentar ajudar Vera na prisão, Armando ainda passa a visitar a mãe dela para lhe dar notícias (daí o título O Mensageiro).
Lúcia Murat faz questão de deixar a narrativa bem explicada. Principalmente, em relação ao conflito que cresce dentro de Armando, que está dividido entre ser um bom soldado e uma boa pessoa (e num regime tirânico não é possível conciliar essas duas intenções). Para isso, alterna a visão que ele tem da sua namorada Marialva (Beatriz Barros) com a de Vera, montagem que simboliza que Armando não consegue enxergar Vera somente como um objeto de tortura (uma terrorista que merece punição, como dizem os demais militares no filme). Da mesma forma, Murat reforça esse conflito no trecho com o rosto de Armando duplicado, vestindo uma máscara. E, ainda, imaginando Vera desfigurada por uma nova sessão de tortura.
Punição aos que escolherem torturar
Um pouco antes da cena com Lúcia Murat, Vera tenta o suicídio. Não morre, mas some do filme. Assim, fica definitivamente claro que o filme não é sobre Vera, mas sobre Armando. Ou seja, como atestam o sermão do padre e a aula de Murat, O Mensageiro traz a perspectiva dos torturadores. No entanto, apontando que eles são responsáveis pelos seus atos. Ao retratar um soldado que se recusa a fazer parte dessa máquina da ditadura, derruba o argumento daqueles que alegam que só cumpriam ordens. Exige, portanto, inclusive com as cartelas finais, que esses criminosos sejam devidamente punidos.
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Ficha técnica:
O Mensageiro | 2023 | 108 min | Brasil, França | Direção: Lúcia Murat | Roteiro: Lúcia Murat, Tunico Amâncio | Elenco: Georgette Fadel, Shi Menegat, Valentina Herszage, Floriano Peixoto, Javier Drolas, Beatriz Barros, Bruce Gomlevsky, Higor Campagnaro.
Distribuição: Imovision.
O filme O Mensageiro estreia no dia 15 de agosto de 2024 nos cinemas.
Trailer:
