“O Que a Carne Herda”: Preconceito racial sob ponto de vista feminino
Elia Kazan aborda um tema controverso na época, o preconceito racial, por um ponto de vista adicionalmente audacioso, o de uma mulher.
A trama
Patricia Johnson (Jeanne Crain), a Pinky do título original, regressa para a humilde casa de sua família no sul dos Estados Unidos, após passar alguns anos na região norte estudando e praticando enfermagem. A sua única parente, sua avó, chamada de Granny (Ethel Waters), não a reconhece à primeira vista. Pinky possui pele branca, apesar de sua família ser negra, e, com tantos anos sem a ver, ainda mais com roupas elegantes, sua avó pensa que ela é outra pessoa e a chama de “madame”.
Granny sabe que Pinky fingiu ser branca enquanto viveu no Norte e a critica por isso, condenando-a a rezar e pedir perdão a deus. Porém, sua afeição logo volta e a acolhe como antes. No pequeno vilarejo, ela sofre o preconceito a partir do momento em que confessa ser negra. Isso acontece com os policiais, cujo tratamento muda de polido para agressivo assim que a verdade é revelada. Ao caminhar pelas ruas e ser abordada por dois homens brancos, quase é estuprada após revelar que mora no bairro negro.
Triste e assustada, Pinky quer voltar para o Norte, mas sua vó suplica que ela use sua formação como enfermeira para cuidar da fazendeira Miss Em (Ethel Barrymore), gravemente enferma. A velha senhora, apesar de seus gestos rudes, é reconhecida por Granny como uma pessoa muito boa.
Mesmo com os cuidados de Pinky, Miss Em morre. E deixa sua casa como herança para a jovem enfermeira, o que irrita a cunhada da falecida, que leva o caso a julgamento para tentar invalidar o testamento. Todos, inclusive o namorado de Pinky que lhe faz uma visita, aconselham-na a abrir mão da casa, mas ela resolve lutar até o fim. Esse enfrentamento ajudará a Pinky aceitar sua verdadeira herança.
Racismo na época da produção
Apesar de o tema central do filme ser o preconceito racial, seus produtores não ousaram contratar uma atriz mulata com pele clara para o papel de Pinky, o que seria mais autêntico do que a caucasiana Jeanne Crain, apesar de sua ótima atuação que lhe rendeu uma indicação ao Oscar. É um enorme defeito dessa produção, mas em 1949 o racismo prevalecia nos EUA. Chegava ao absurdo de a cena de beijo entre Pinky e seu namorado causar polêmica, por ser uma relação inter-racial.
O diretor Elia Kazan era habilidoso no gênero drama e conseguia demonstrar isso nos conflitos internos de seus personagens. Aqui, Jeanne Crain demonstra a dificuldade de se aceitar como negra. Apesar de amar sua vó, prefere fugir para o mundo de disfarce onde podia esconder sua ascendência. Percebe que ser negra e mulher a expunha a dificuldades ainda maiores. As expressões faciais da atriz revelam por isso uma constante angústia.
Kazan dirigiu filmes fortemente melodramáticos, como “Vidas Amargas” (East of Eden, 1955). Porém, em “O Que a Carne Herda”, preferiu um sentimento mais contido, para enfatizar o tema social.
Ficha técnica:
O Que a Carne Herda (Pinky, 1949) 102 min. Dir: Elia Kazan. Rot: Phillip Dunne e Dudley Nichols. Com Jeanne Crain, Ethel Barrymore, Ethel Waters, William Lundigan, Basil Ruysdael, Kenny Washington, Nina Mae McKinney, Griff Barnett, Frederick O’Neal, Evelyn Varden, Raymond Greenleaf.
Assista: Elia Kazan recebendo o Oscar honorário
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