Uma das coisas mais interessantes do Letterboxd, a rede social dos cinéfilos, é que serve como termômetro da aceitação ou recusa a certos filmes. Como a maior parte dos usuários dá cotações, ficamos sabendo de que modo cada filme tem sido recebido pelos vários tipos de cinefilia mundial. No caso de RRR: Revolta, Rebelião, Revolução, novo filme de S.S. Rajamouli, tive uma surpresa: é praticamente uma unanimidade positiva por lá.
Se isso se deve ao exotismo ou a um gosto inesperado pelo cinema comercial indiano, não sei. Mas suspeito que a primeira hipótese seja mais verdadeira, já que RRR não é lá muito típico de Bollywood (a não ser pela duração e pelos números musicais) e perde em qualidade para a maior parte dos filmes indianos associados a Bollywood (como não são os de Satyajit Ray, nem os de Ritwik Ghatak) que vi.
Na verdade, como é falado em Telugu, o filme seria Tollywood, uma das inúmeras variações do riquíssimo cinema feito na Índia. Está mais para Tollywood encontra David Lean, numa mistura lamentavelmente empobrecida pelo onipresente CGI.
Nas suas pouco mais de 3 horas, passeamos por outras similaridades bem menos favoráveis ao filme. Em certos momentos, ele se assemelha a uma novela da Record. Em outros, lembra triunfos da afetação como Assassinos por Natureza (Natural Born Killers, 1994), de Oliver Stone.
Os animais computadorizados remetem tanto a As Aventuras de Pi (Life of Pi, 2012, dir: Ang Lee) quanto ao novo e dispensável O Rei Leão (The Lion King, 2019, dir: Jon Favreau) e deveriam servir para que nunca mais se fizesse isso na história do cinema (quando sabemos que acontecerá o contrário, só nos resta lamentar). Como fazer as cenas com os animais, então, caro crítico? Simples: não façam.
Bromance na pré-independência
O maniqueísmo pode até ser divertido, colocando ingleses nojentos de um lado, pobres indianos de outro, com alguns revoltados e uma minoria (uma mulher) de “brancos do bem” no meio. Mas obviamente não ajuda a fazer com que o filme seja menos infantil em seu desenvolvimento, ainda que as idas e vindas no tempo lhe confira um toque de sofisticação inesperado.
O que poderia ajudar é a insinuação do “bromance”, a forte amizade masculina que esconde uma igualmente forte atração que os dois heróis buscam reprimir, eventualmente com o interesse de um ou dos dois deles por mulheres (geralmente postiças na trama). Eles eventualmente estão lado a lado e assim deveriam estar sempre, mas têm também missões aparentemente opostas durante boa parte do filme.
Também poderia ajudar o pano de fundo, a Índia de 1920, pré-independência, e a luta contra o maligno império britânico. Nas duas frentes, o filme tem um tratamento surpreendentemente tolo se comparado aos dramas históricos ou aos filmes sobre o amor entre homens feitos em Hollywood no passado (a Hollywood de hoje, vale repetir, não consegue mais competir com nada em matéria de qualidade).
A comparação entre Tollywood e Hollywood nem se justifica, pois se é para ver enlatado, ao menos os ingredientes podem ter um gosto diferente por causa de um outro tempero (exótico ao nosso olhar, sim, mas nem por isso menos válido). E o exagero, afinal, é mais atraente do que a cartilha do academicismo atual do cinema americano.
Nosso prazer catártico de ver colonizadores tomando sovas ou os típicos números musicais delirantes do cinema indiano podem bastar para aguentarmos as 3 horas de duração, mas não bastam para que RRR: Revolta, Rebelião, Revolução seja mais do que uma experiência divertida, como também cansativa e limitada.
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Ficha técnica:
RRR: Revolta, Rebelião, Revolução | RRR (Rise Roar Revolt) | 2022 | 3h07 | Índia | Direção: S.S. Rajamouli | Roteiro: S.S. Rajamouli, Sai Madhav Burra | Elenco: N.T. Rama Rao Jr., Ram Charan Teja, Ajay Devgn, Alia Bhatt, Olivia Morris, Shriya Saran, Ray Stevenson, Alison Doody.
Distribuição: Netflix.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.