Estreando como diretor de um longa metragem, Luiz Sérgio Person realizou um dos mais importantes filmes da história do cinema brasileiro. E um dos melhores também. “São Paulo, Sociedade Anônima” ainda hoje exala ares de modernidade, tanto na linguagem como no tema.
O enredo
O filme conta eventos ocorridos, entre 1957 e 1961, na vida de Carlos (Walmor Chagas). Ele é um rapaz de 26 anos, em carreira profissional ascendente dentro da indústria automobilística, e em processo de amadurecimento pessoal. O sucesso no trabalho demanda um ritmo de vida acelerado na capital dos negócios brasileiros, e entra em choque com seus valores. Ele sai do emprego na Volkswagen para aceitar uma oferta de um cargo mais alto em uma empresa menor de autopeças. Logo, conhece melhor o seu empregador, o empresário Arturo. Este é um capitalista sem escrúpulos, que explora seus funcionários, sonega impostos e não cumpre as obrigações trabalhistas. Além disso, se safa dos fiscais através de subornos.
Ademais, Arturo ainda trai com frequência sua mulher, e quer que Carlos compartilhe com ele esse modo de vida. O rapaz não aceita, pois, depois que se casou com Luciana (Eva Wilma), nunca mais saiu com outras mulheres. Então, quando a própria esposa procura seu patrão para propor a admissão de Carlos como sócio de Arturo, mediante um aporte de capital, Carlos decide romper com tudo.
Leitura política
Cabe uma leitura política a respeito de “São Paulo, Sociedade Anônima”. Podemos interpretá-lo como um enredo contra esse capitalismo disfuncional, corrupto e opressor, representado pelo empresário Arturo. Nesse sentido, o filme trabalha a identificação do espectador com o personagem Carlos, a fim de provocar a consciência sobre essa situação. É por isso que ele ainda soa tão atual, quando o Brasil ainda sofre com a corrupção e o equilíbrio entre a vida profissional e pessoal continua desbalanceada. Além disso, sua atualidade resulta também do aspecto mais individual. Nesse aspecto, lembra o existencialismo dos filmes do diretor italiano Michaelangelo Antonioni.
Ousadia na direção
Por outro lado, “São Paulo, Sociedade Anônima” surpreende por sua linguagem cinematográfica ousada. Nota-se a influência da nouvelle vague. De fato, os jump cuts, característica marcante desse movimento francês, surgem na sequência onde Carlos e sua paquera Hilda (Ana Esmeralda) correm pela mata. Ademais, a preferência pela filmagem em locações é outro elemento que remete ao cinema de Godard, principalmente porque os pedestres descaradamente olham para a câmera.
Fica evidente que Luiz Sérgio Person deseja filmar com estilo além do cinema clássico. A própria narrativa fragmentada, que não deixa o espectador saber em que período da linha de tempo se passa cada sequência, já demonstra essa preocupação. O filme termina no ponto onde começou, quando vemos, através do vidro, Carlos e sua esposa discutindo no apartamento deles, sem que possamos ouvir o que dizem. Em seguida, Carlos sai do local e a câmera que estava focalizando Luciana se vira para mostrar, em plongée, o marido na rua saindo do prédio.
Person foge do casual, e quando Carlos esbofeteia outra de suas paqueras, Ana (Darlene Glória), a cena apresenta vários cortes rápidos. Talvez, influenciado pela introdução de “O Beijo Amargo” (The Naked Kiss, 1964), célebre filme de Samuel Fuller, que foi um dos maiores cineastas do cinema independente norte-americano. A violência da cena ganha paralelo com as ondas brutais do mar se chocando contra as pedras, para imediatamente depois mostrar os dois se beijando voluptuosamente nas pedras da praia. É uma forma inteligente de caracterizar o relacionamento de Carlos e Ana, revestido de sexo e brutalidade.
Outros destaques
A ousadia de “São Paulo, Sociedade Anônima” não deixa espaço para o espectador se entediar. Walmor Chagas, no papel de Carlos, fala diretamente para a câmera. Dessa forma, utiliza a quarta parede para contar diretamente a quem assiste ao filme os acontecimentos de sua vida. Depois, quando relata ao policial sobre Hilda, na tela ela surge dançando no Carnaval com mise-en-scène estilizado e com cortes rápidos.
Outro momento brilhante é a sequência da aula de inglês, na segunda vez que esse momento surge nas telas, depois que Carlos começou a flertar com Helena, sua colega de classe. Note que as palavras e sentenças que a professora pede para os alunos repetirem refletem a situação do relacionamento dos dois.
Por fim, destaca-se também a cena filmada em plano geral com a câmera em high angle onde Carlos anda por um estacionamento enorme, à procura de um carro para roubar. À distância, o personagem parece minúsculo e por isso insignificante diante da grandiosidade da cidade. E, especificamente, da máquina que move essa sociedade industrializada. Ou seja, Carlos, no meio disso tudo, é apenas uma peça, daí a imagem recorrente de uma engrenagem repetida várias vezes durante o filme.
“São Paulo, Cidade Anônima” continua pungente. É, sem dúvida, uma das melhores obras do cinema brasileiro.
Ficha técnica:
São Paulo, Sociedade Anônima (São Paulo, Sociedade Anônima. 1965) Dir/Rot: Luiz Sérgio Person. Elenco: Walmor Chagas, Ana Esmeralda, Eva Wilma, Otelo Zeloni, Darlene Glória, Mário Audrá, Lenoir Bittencourt, Victorio Bondiolli, Osmano Cardoso, João Calherani, Nadir Fernandes, Etty Fraser, Marta Gonda, Renato Gonda, Ricardo Gonda.