De onde veio e como começou essa moda de fazer filmes longos, com duas horas e meia de duração ou mais? Arrisco uma resposta: da mania das séries televisivas e da visão em streaming. Desde que cinéfilos passaram a ver mais filmes em casa, transformados eventualmente por eles em minisséries de dois ou três capítulos, os diretores e produtores passaram a ter o streaming como norte. E os atos dos filmes ficaram ainda mais marcados, para facilitar a divisão posterior pelo espectador.
Claro que nem sempre dá certo, nem sempre é intencional, e está longe de ser o único motivo. Mas acredito que isso tenha movido alguns a inchar os filmes e a onda cresceu, tornou-se sinal de prestígio fazer filmes grandes. Até Spielberg caiu nessa com Os Fabelmans (The Fabelmans, 2022).
E aí entramos numa outra questão. Por mais que a finalidade seja meio torpe, os realizadores conseguem desenvolver minimamente bem a narrativa para caber nesse tempo alargado? Ou criam uma estrutura que precisava ser menor para evitar as tapeações ou até maior para não ter um ritmo atropelado, mas se veem obrigados ao habitual recorte dos 150 a 190 minutos? Babilônia (Babylon, 2022) é um exemplo de filme que precisava ser maior do que seus 187 minutos para dar certo. Bem, precisava de outras coisas também, mas se fosse maior o ritmo de trailer teria como ser evitado com maior facilidade.
Teste de resistência
Chegamos em Tár, um filme de 158 minutos com 5 minutos de créditos finais deslocados para o começo, numa espécie de teste de resistência para o espectador mais ansioso. Trata-se da cinebiografia da compositora e regente Lydia Tár (Cate Blanchett). Uma das mais celebradas em sua arte, segundo Todd Field, o diretor do filme e criador do personagem. Isso mesmo, Lydia Tár só existe na ficção. Talvez só assim dê para conseguir aquele aspecto de registro documental de uma pessoa real.
Mas a interpretação sobrenatural de Blanchett pode criar uma nova realidade, além de suas falas, escritas por Field como se tiradas da autobiografia de uma musicista com personalidade, inteligente e questionadora, mas também com sérias falhas de caráter, e das cenas musicais, que nos convencem de que Tár é uma excelente regente, com ouvido absoluto e sensibilidade para extrair aquele algo mais das composições. Esses são os trunfos do filme, que tem também suas bobagens.
Logo no início, num debate dentro de um teatro lotado, Francesca Lentini (Noémie Merlant, de Retrato de uma Jovem em Chamas [Portrait de la jeune fille en feu, 2019]) acompanha com os lábios tudo que fala o mestre de cerimônias. Qual o sentido de uma cena assim a não ser mostrar profunda familiaridade com o texto lido? Alguém é doido o suficiente para fazer isso na vida real? Por que o espectador precisa saber, nesse momento, que ela sabe exatamente o que está sendo dito para apresentar a famosa musicista? Bastava a dedicação mostrada por ela durante boa parte do filme para sabermos o que ela representa naquele ambiente, uma fiel escudeira.
O caráter de Tár
O filme, contudo, começa bem, mostrando a desenvoltura de Tár como entrevistada e como professora, quando desbanca um cancelador com argumentos sólidos. Mas no processo pratica um bullying desnecessário, que faz a crítica virar do avesso. Isso mostra bem o caráter da musicista e sua falta de limites. Só depois de uns 40 minutos o filme entra em sua intimidade na volta à Alemanha. É quando conhecemos sua companheira Sharon Goodnow (Nina Hoss, atriz de vários filmes de Christian Petzold), e Petra, filha de ambas.
Também na intimidade, a personalidade de Tár é repleta de problemas. Entende-se que depois de passar um dia inteiro conversando com pessoas por motivos profissionais, ela entre em um modo quase silencioso com a assistente e depois com a companheira. Mas Tár resolve brincar com as expectativas das pessoas sem muito respeito, exercendo sua síndrome do pequeno poder para demitir velhos e fiéis assistentes e não colocar as pessoas óbvias nos lugares que elas mereceriam estar.
A crítica a um estado de coisas nas altas ambiências artísticas é muito bem-vinda, ainda mais porque mostra bem as intrigas e o arrivismo inerente a profissões que lidam com o ego. Mas existe um exagero tão grande na punição que quase termina por deixar-nos com empatia por ela, por mérito também de Blanchett.
No bojo do supérfluo
Como um sinal lamentável dos tempos: é preciso mostrar a personagem vomitando em algum momento, como se fosse um pedágio a pagar para entrar num certo tipo de filme contemporâneo. Como isso acontece num apêndice que, a meu ver, nem devia existir, pois nada contribui a não ser para o filme ficar com o tamanho da moda, podemos misturar a cena no bojo do supérfluo, embora sejamos obrigados a vê-la.
De Todd Field só conhecia o terrível Pecados Íntimos (Little Children, 2006). Nesse sentido, dá para falar em evolução. Mas pelo que o próprio filme havia apresentado no primeiro ato (tirando o pequeno problema mencionado), a sensação geral é de que não houve fôlego para tanta duração. Os primeiros 40 minutos de Tár e os últimos 40 ou 45 minutos de Babilônia indicam filmes que poderiam ser bem melhores do que vemos na tela.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
Tár | 2022 | 158 min | EUA | Direção e roteiro: Todd Field | Elenco: Cate Blanchett, Noémie Merlant, Nina Ross, Sophie Kauer, Sydney Lemmon, Mark Strong, Alec Baldwin.
Distribuição: Universal.