Mesmo com mais de 80 anos, Denys Arcand continua a ser um enfant terrible. Seu novo filme, Testamento, revela um cineasta desgostoso com o mundo atual. Na amarga narração em primeira pessoa do protagonista Jean-Michel, de 73 anos, se sobressaltam seus principais descontentamentos, que se transformam em narrativa, nem sempre de maneira fluída.
Acima de tudo, Arcand parece não ver sentido na proliferação de tantas causas a se defender. Num dos momentos forçados, Jean-Michel comparece a uma cerimônia de entrega de prêmios literários. Para sua surpresa, ele é um dos contemplados. Mas, ele é o único homem no palco, o único aplaudido com pouco entusiasmo, enquanto as outras, que são ferrenhas defensoras de alguma causa, são ovacionadas. A crítica a tudo isso fica ainda mais contundente quando ele descobre que o prêmio que recebeu era para outro escritor, que tem o mesmo sobrenome. Não é à toa que ele tenha se sentido um peixe fora d’água no evento.
Outra crítica vem, também um pouco forçada, em forma de esquete em sucessivas inserções. Jean-Michel encontra um amigo que pratica esportes e mantém uma dieta saudável, como vangloria a esposa dele. Seguindo a veia sarcástica do filme, não surpreende que ele morra de ataque cardíaco. Consequentemente, a viúva chuta o balde e inverte os hábitos que o casal mantinha.
Uma causa pela outra
Por fim, as linhas narrativas principais acontecem na casa de repouso onde mora Jean-Michel. Seguindo as diretrizes do governo, a diretora do estabelecimento desmonta a biblioteca e substitui os livros por computadores para os idosos jogarem videogames. Enquanto isso, um pequeno grupo de manifestantes se instala em frente ao prédio para protestar contra uma pintura antiga que está numa parede da casa de repouso, pois ela ofende as primeiras nações (os povos originários). Denys Arcand aponta o absurdo de situações como essa, e reforça seu ponto-de-vista ao mostrar que o caso chega aos ministros do governo. E não só isso, pois a solução provoca outro protesto, como já indicara a música soturna de fundo enquanto a tal pintura é apagada.
Mas, Arcand não se limita à amargura. Um relacionamento surge na vida do personagem principal, mudando sua perspectiva para o que lhe resta ainda a viver.
Em meio ao humor, que alterna momentos engraçados e outros nem tanto, Testamento pede ao espectador que reflita antes ao invés de embarcar automaticamente nas tantas causas que surgem em ondas. Será que todas fazem sentido? – indaga o sempre questionador Denys Arcand.
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Ficha técnica:
Testamento | Testament | 2023 | 115 min | Direção: Denys Arcand | Roteiro: Denys Arcand | Elenco: Rémy Girard, Sophie Lorain, Guylaine Tremblay, Caroline Néron, Charlotte Aubin, Robert Lepage, Denis Bouchard, René Richard Cyr, Clémence Desrochers, Guillaume Lambert, Danièle Lorain, Marie-Soleil Dion, Louis-José Houde, Gaston Lepage, Marie-Mai.
Distribuição: Imovision.
Assista ao trailer aqui.