Uma Garota de Muita Sorte (Luckiest Girl Alive) ressoa positivamente por lidar com seriedade dois temas muito caros. Um deles é o movimento #metoo, que incentiva as mulheres que sofreram estupro ou abuso sexual a denunciarem seus agressores. Nesse ponto, a abordagem aqui não entra na via raivosa de Bela Vingança (Promising Young Woman, 2021). Assim, prefere se manter mais pé-no-chão e, assim, obter um resultado menos fantasioso. O outro tema é universal, e se refere a sempre levarmos uma vida sincera.
Esses dilemas incomodam a protagonista Ani Fanelli, vivida por Mila Kunis. Aliás, uma atriz versátil, que consegue convencer em comédias escrachadas como Perfeita é a Mãe (Bad Moms, 2016) e como vilã em dramas pesados como Cisne Negro (Black Swan, 2010). Ani se esforça para ignorar o estupro coletivo que sofreu no último ano do colegial em 1999, quando estava embriagada. Na época, não teve coragem de denunciar os três garotos (os típicos bonitões valentões dos filmes americanos). E manteve essa postura até agora, em 2015. Afinal, está prestes a ter um casamento dos sonhos com um belo rapaz de família rica, como sua mãe sempre desejou. Mas, surge uma nova oportunidade de ela resolver essa ferida que nunca curou, como comprovam as breves alucinações que ela sofre diante de uma faca. E fugir não é uma solução.
Vida de aparências
Além dessas nada sutis demonstrações de sua instabilidade, o filme também escancara que ela mantém uma vida de aparências. Logo de cara, num almoço, ela come como um passarinho na frente do noivo. Mas depois devora tudo o que sobrou quando ele sai da mesa por uns instantes. No trabalho também, pois pensa em declinar uma tão almejada proposta de trabalhar no New York Times para acompanhar o marido que irá trabalhar em Londres. Sem contar, ainda, que ela precisa fingir para a família do noivo que ela é mais sofisticada do que realmente é.
Mas o diretor Mike Barker também sabe ser elegante. Ele, que realizou filmes um pouco acima da média e depois de 2007 se dedicou à direção de episódios de séries (Outlander, O Conto da Aia, Sandman etc.), comunica essa questão através dos espelhos. A personalidade fragmentada de Ani ganha o seu duplo em várias cenas em que ela vê seu reflexo, seja em espelhos propriamente ditos (na prova do vestido, nos banheiros etc.) ou em vidros (da porta do prédio, do carro etc.). Um recurso clássico, que quando bem utilizado, como neste filme, reforça a narrativa sem ser gratuitamente.
Mensagem correta
Enfim, a mensagem é clara. Ani demonstra que sua denúncia a liberta para uma vida mais sincera e, consequentemente, feliz. Ao mesmo tempo, estimula outras vítimas a buscarem similar libertação. O filme ilustra isso com a bela sequência em que a protagonista anda pelas ruas e pelo metrô e ouvimos as vozes interiores de outras mulheres que passaram pela mesma situação traumática. E, embora Uma Garota de Muita Sorte se direcione mais às mulheres, a mensagem vale também para vítimas masculinas e para situações de assédio moral, como a que sofreu um colega de Ani da escola.
Em suma, Uma Garota de Muita Sorte é um filme correto, tanto na sua mensagem quanto na sua realização.
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Ficha técnica:
Uma Garota de Muita Sorte | Luckiest Girl Alive | 2022 | 113 min | EUA | Direção: Mike Barker | Roteiro: Jessica Knoll | Elenco: Mila Kunis, Chiara Aurelia, Finn Wittrock, Connie Britton, Scott McNairy, Justine Lupe, Dalmar Abuzeid, Alex Barone, Jennifer Beals, Carson MacCormac, Thomas Barbusca, Nicole Huff, Rebecca Ablack.
Distribuição: Netflix.