Os Beatles foram tão essenciais para a cultura popular mundial que, agora, Yesterday trabalha uma trama muito original que questiona o que aconteceria se eles não tivessem existido.
Nessa estória, Jack Malick trabalha numa loja para ganhar a vida, mas almeja mesmo a carreira de músico profissional. Ajudado por sua amiga e empresária Ellie, ele só consegue tocar em lugares pequenos e com pouco público. Enfim, depois de uma frustrada participação em uma tenda vazia dentro de grande festival, ele decide abandonar seu sonho. Para ele, só um milagre conseguiria salvar sua carreira.
E o milagre acontece quando um blecaute global durante alguns segundos altera alguns fatos do mundo como o conhecemos. Neste novo mundo, não existem e nunca existiram cigarros, Coca Cola… e os Beatles. Jack parece ser a única pessoa do mundo que se lembra do quarteto de Liverpool e de suas músicas. Então, Jack resolve aproveitar a oportunidade para lançar o maravilhoso repertório dos Fab Four como se fossem composições suas.
Mas o sucesso vem com um custo muito alto. Jack sente a culpa de ser um impostor e ainda perde Ellie, que ele descobre ser mais do que uma amiga.
Dilemas morais
Yesterday constrói bem esses dilemas de Jack, ao mesmo tempo que consegue ser muito engraçado. No entando, é verdade que muitas piadas só serão compreendidas por fãs dos Beatles. A primeira delas, quando Jack cita alguns famosos versos de “When I’m 64” (“Will you still need me, will you still feed me, When I’m sixty-four”) para Ellie e ela não entende por que essa música nunca existiu no mundo alternativo em que eles estão. Aliás, há várias cenas hilariantes, talvez a melhor delas seja quando Jack canta “Yesterday” para os amigos e todos ficam deslumbrados com “a nova composição” dele.
Algumas tiradas demandam um pouco mais de conhecimento geral sobre o rock britânico. Jack, por exemplo, não fica espantado por saber que o Oasis também nunca existiu. Afinal, quem entende do assunto sabe que a banda dos irmãos Gallagher era totalmente influenciada pelos Beatles.
Adicionalmente, Yesterday ainda traz Ed Sheeran como um dos coadjuvantes, interpretando a ele mesmo. É Sheeran quem dá o grande impulso na carreira de Jack Malick, ao pedir para ele abrir o seu show, e os dois continuarão como colegas de profissão pelo resto do filme.
Dirigido por Danny Boyle
O diretor Danny Boyle já não explora tanto os recursos visuais modernos e inusitados como fazia no início de sua carreira – como em Trainspotting (1996). Porém, ainda comunica a narrativa somente com imagens, vide a colagem rápida que descreve como a carreira musical de Jack Malick não era nada promissora.
De novo, Danny Boyle repete a escalação de um ator inglês de ascendência indiana que deu certo em Quem Quer Ser Um Milionário? (2008) com Dev Patel. Curiosamente, outro Patel, que não é seu irmão, interpreta aqui Jack Malick. Desta vez, é Himesh Patel, que encarna com perfeição esse personagem simpático, mas um pouco perdido. Ao lado dele, está Lily James, melhor do que nunca no papel de Ellie. Os dois formam um casal com uma química tão poderosa que com certeza emocionará os espectadores nas cenas mais românticas.
Roteiro de Richard Curtis
E tudo isso funciona perfeitamente para transpor para as telas, com qualidade, o inteligente roteiro escrito pelo veterano Richard Curtis, autor de pérolas como Quatro Casamentos e um Funeral (1994). Curtis foi eficiente ao resolver a questão de como mostrar no filme que os Beatles, e outras coisas, nunca existiram. Para isso, simplesmente mostra Jack procurando no Google e recebendo como resultado a segunda associação mais próxima da busca do termo. No caso dos Beatles, o resultado é um Fusca e um besouro. Com isso, o roteiro aproveita para inserir mais humor no filme.
Então, um ponto mais delicado e que Richard Curtis desenvolve acertadamente é o dilema moral de Jack, com as duas outras pessoas que, como ele, se lembram dos Beatles. Eles dizem a frase que representa a chave para a libertação de Jack: “o mundo seria bem pior sem os Beatles”. Por outro lado, como essa questão já estaria resolvida, soa desnecessária a visita a um dos membros sobreviventes dos Beatles, e até a confissão diante do público. Essas duas cenas, já perto do final, não funcionam tão bem quanto todo o restante de Yesterday.
Enfim, Yesterday emocionará a todos, e arrancará muitas risadas, mas impactará mais os apreciadores dos Beatles. Após o filme, muitos desses tentarão, como Jack Malick, se lembrar se a letra de “Eleanor Rigby” menciona mesmo que Father Mackenzie está “darning his socks in the night when there’s nobody there” (“costurando suas meias na noite em que ninguém está lá”). Uma frase nonsense que todos sempre cantaram e nunca tentaram interpretar.
