Jonathan Glazer estreou com o anárquico filme policial Sexy Beast (2000). Em seguida, apostou no estranho mistério de Reencarnação (2004). Por fim, deslumbrou o público com as imagens da ficção-científica Sob a Pele (2013). E uma característica presente em todos esses longas continua em Zona de Interesse, seu novo e mais badalado lançamento: a insistência em realizar obras não convencionais.
A abertura de Zona de Interesse já abraça esse direcionamento, pois é um longo trecho com a tela totalmente preta, e uma música sombria ao fundo. Qual a intenção do diretor? Forçar a imersão do público desde os primeiros instantes? Simbolizar a cegueira que domina a protagonista? Ou mostrar que a escuridão (o mal) está bem ao lado da aparente tranquilidade de um dia ensolarado no campo à beira de um lago (a cena seguinte)?
Hedwig
Boa parte do filme mostra a percepção que Hedwig Höss (Sandra Hüller) tem do mundo em que vive. Não no sentido de sua perspectiva, que poderia levar a uma indesejada empatia do espectador. E o filme não quer isso; pelo contrário, quer despertar o seu espírito crítico, para que sempre busque a verdade. E isso vale não só para a sua trama, nem somente para o pior ato de crueldade da humanidade em toda a sua história. Acima de tudo, vale para que isso nunca mais se repita.
Por isso, demora para a câmera mostrar o rosto de Hedwig. E, depois, se evitam os planos próximos e close-ups. De longe, ela é uma mulher dedicada a seu marido e a seus vários filhos. Com a ajuda de empregados, cuida de uma casa sempre impecavelmente limpa e arrumada, incluindo o jardim florido. Tudo parece novo em folha, e de fato é. Tal como Hedwig, o espectador só vê essa aparência, e não o campo de concentração de Auschwitz que está ali colado, atrás do muro. Ela mora ali porque seu marido Rudolf (Christian Friedel) é o atual comandante responsável pelo local. De certa maneira, esse contraste tão próximo lembra os atuais condomínios de luxo construídos ao lado de favelas.
A mãe
Mas, voltando ao filme, Hedwig representa a grande parcela da população da época, na Alemanha e em outros países do III Reich, que apoiaram Hitler. Não eram todos que pensavam assim. No enredo do longa, a mãe de Hedwig a visita por uns dias. Quando ela está em cena, e a cena do jardim evidencia isso, é possível ouvir os gritos de desespero dos prisioneiros de Auschwitz. Esses sons estão ausentes quando Hedwig está no mesmo local, porque essa personagem prefere ignorar a realidade. Para a mãe, porém, os judeus não são figuras distantes. Ela mesma já trabalhou na casa de uma família judia. Então, para a mãe, a beleza aparente do jardim e da casa não conseguem mascarar as atrocidades que acontecem logo ao lado.
Em uma montagem rápida, passam na tela planos curtos de belas flores, até que a vermelha se transforme numa tela inteiramente escarlate, acompanhada de uma trilha musical de uma nota em tom muito grave. A mãe enxerga o horror que a filha prefere ignorar. Por isso, ela vai embora e deixa uma carta para a filha. O espectador não vê o seu conteúdo, mas imagina que seria algo assim: “Como você pode aceitar isso?”. Hedwig dá de ombros, simplesmente joga a carta no fogo.
O marido
Até mesmo Rudolf, o marido, tem mais consciência do que Hedwig. O fato de dormirem em camas separadas já indica a diferença entre os dois. De fato, ele se espanta quando ela diz que quer continuar ali quando ele recebe uma transferência para outra cidade.
Rudolf sabe que faz um serviço sujo, por isso, faz questão de sempre tirar as suas botas ao entrar em casa, e as deixa na porta para o empregado lavar. Isso mostra que ele não quer levar a sujeira do seu trabalho para dentro do seu lar. Numa noite, ele vê a chaminé que expele a fumaça após a incineração dos corpos das vítimas. Aliás, o filme nunca reúne em cena uma realidade do campo e a figura de Hedwig.
Por sua vez, Rudolf se desespera ao notar as cinzas das vítimas nas águas do rio em que ele e seus filhos se banham. O filme não revela, mas deve ser dele o sonho com a menina próxima a representações do campo, em tom de negativos de fotos, acompanhadas daquela nota em tom grave. Porém, é a cena final que comprova que o marido, embora executante das ordens de Hitler, está mais consciente do que sua esposa. Após receber a incumbência de chefiar o maior extermínio de judeus de Auschwitz, Rudolf passa mal e vomita de nervoso enquanto desce as escadas do prédio da SS. Intercalada com cenas do museu construído no local do campo de concentração, essa conclusão apela para a consciência das pessoas. O filme mostra que Rudolf Höss, que realmente existiu, cumpria ordens, mas mesmo assim era consciente da barbárie de seus atos. Assim, desce as escadas com as luzes apagadas como se caminhasse para as trevas. Já sua esposa preferia ignorar a verdade.
Nunca mais
O museu de Auschwitz continua de pé para evitar atitudes como a de Hedwig, e Zona de Interesse (este filme e o livro de Martin Amis) contribuem para o mesmo intento. Jonathan Glazer entrega essa mensagem através de um filme coeso, tão bem organizado quanto o Reich pretendia ser. Se errasse no tom, as discussões dos militares sobre seus planos hediondos poderia virar uma comédia de humor ácido. Passa perto do deslize ao fazer analogias tolas de judeus com ervas daninhas (na cabeça dos nazistas) e com o conto de João e Maria. Mas Glazer dirige com firmeza e rigidez para não cair nesse erro, tanto que mantém a câmera fixa (só move lateralmente uma vez ao acompanhar uma personagem). Consegue, assim, tocar o espectador, que sai do cinema (é imprescindível a imersão de uma sala escura) atordoado.
O filme Zona de Interesse estreia nos cinemas no dia 15 de fevereiro de 2024.
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Ficha técnica:
Zona de Interesse | The Zone of Interest | 2023 | 105 min | EUA, Reino Unido, Polônia | Direção: Jonathan Glazer | Roteiro: Jonathan Glazer | Elenco: Christian Friedel, Sandra Hüller, Lilli Falk, Imogen Kogge, Medusa Knopf, Stephanie Petrowitz, Maximilian Beck, Freya Kreutzkam, Daniel Holzberg.
Distribuição: Diamond Films.
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