O advento do som no cinema abriu a oportunidade para Jean Renoir ser ainda mais contundente em sua crítica social. Como resultado, A Cadela, seu segundo filme com essa tecnologia, é extremamente visceral e pessimista.
Sua abertura, aparentemente, parece indicar um tom mais cômico. Porém, o filme não segue nessa linha. Na verdade, esse interlúdio teatral é uma marca de Jean Renoir, presente em outras obras suas. Por exemplo, em A Grande Ilusão (1937) e A Regra do Jogo (1939). E remete à sua visão de mundo, que se reflete em personagens com várias camadas. De fato, na maior parte de seus filmes, os seus protagonistas possuem um interior diferente de seu exterior.
É o que vemos no triângulo amoroso em A Cadela. Como o fantoche apresenta no prólogo, os três protagonistas são pessoas comuns, o que nos leva a deduzir que possuem defeitos e qualidades. Então, vamos conhecê-los.
A trama e seus personagens
Maurice Legrand, de 42 anos, trabalha como caixa em uma empresa que vende roupas de baixo. Seus colegas do trabalho o consideram chato e conservador. E, riem dele porque a sua esposa não o permite sair com eles pelas boates noturnas. Como válvula de escape, ele pinta quadros. Aliás, um escape necessário, pois sua esposa é uma megera, que não esconde que ainda ama seu primeiro marido.
Além dele, temos Lucienne Pelletier, ou Lulu, que é uma jovem prostituta explorada pelo seu cafetão, André Jauguin, ou simplesmente Dédé. Este, é um homem agressivo, que espanca Lulu quando ela não consegue trazer-lhe dinheiro.
Numa noite, Legrand vê Dédé batendo em Lulu na rua. Ele intercede e ajuda a moça a ir para casa a salvo. Inconscientemente, Legrand se deixa se envolver pela moça para provar a si mesmo que não é tão careta quando seus colegas pensam. Porém, Legrand logo acaba perdidamente apaixonado por ela.
A direção de Jean Renoir
Jean Renoir dirige A Cadela empregando um estilo visual marcante, que se aprimoraria no decorrer de sua carreira. Por exemplo, os movimentos de câmera que acompanham lateralmente o caminhar dos personagens. Ou, logo no início, quando a câmera percorre todos os colegas do trabalho sentados à mesa, culminando no protagonista Legrand, que ainda não conhecemos.
Além disso, o filme traz várias cenas filmadas em locações nas ruas de Paris, principalmente à noite. Dessa forma, resultam em cenas plasticamente mais belas do que se fossem captadas em cenários de estúdio. Adicionalmente, trazem uma característica naturalista essencial para a crítica social inserida na estória.
Em A Cadela, o cineasta francês antecipa o uso da profundidade de campo. A princípio, como experimentalismo técnico, pois vemos a ação no apartamento vizinho de Legrand pela janela, sem que isso contribua para a narrativa em si. Mesmo assim, provaria um recurso que ele aproveitaria melhor em futuros filmes.
Ademais, outro aspecto curioso é o emprego da mesma canção que Renoir viria a retomar na apresentação teatral cômica em A Grande Ilusão. No entanto, aqui as letras românticas dão um toque trágico à cena, num crime motivado pela paixão.
O elenco de A Cadela
À frente do elenco de A Cadela desponta o experiente Michel Simon no papel de Maurice Legrand. É a terceira vez que o ator trabalha sob direção de Jean Renoir, e sua atuação é impecável. Fica visível o sentimento derrotista do seu personagem, o que torna o desfecho do filme compreensível, mas ao mesmo tempo surpreendente.
Já Georges Flamant está perfeito como Dédé. Em seu primeiro filme no cinema, ele parece autêntico como o odioso vilão. Apesar disso, provando a tese anti-maniqueísta de Jean Renoir, ele desperta compaixão ao ser injustamente condenado.
Por fim, Janie Marèse ganha um paralelo trágico entre seu personagem Lulu e sua vida pessoal. Após gravar este terceiro filme de sua carreira, ela viria a morrer num acidente automobilístico em 1931, aos 23 anos.
Tema e desfecho (spoilers adiante)
A Cadela critica o uso comercial da mulher e da arte. Dédé ganha dinheiro em cima da prostituição de Lulu, e, também a utiliza para fingir que é a autora dos quadros que Legrand pintou. Além disso, Lulu precisa seduzir e se oferecer para os compradores em potencial.
Considerando a vida pessoal de Jean Renoir, instiga-nos a probabilidade de o diretor questionar o valor comercial da arte. Provavelmente, ele exorciza os fantasmas de seu relacionamento com o pai, o famoso pintor Pierre Auguste Renoir, cujos quadros ele vendeu para financiar seus filmes. Por isso, uma sequência do filme mostra a promoção de uma falsa artista como se fosse a nova sensação do mercado de artes.
Então, no desfecho de A Cadela, cumpre-se a premissa de que os personagens não possuem uma só faceta. O pacato, e até passivo, Legrand, perde a cabeça e mata Lulu por ciúmes. Pior ainda, deixa Dédé ser condenado à morte. Ou seja, a figura que despertou compaixão dos espectadores agora age como um frio assassino.
Além disso, na derradeira cena, Legrand se tornou um mendigo. Afinal, perdera o emprego porque estava roubando da empresa para custear os luxos de sua amante. Então, vê um dos seus quadros ser vendido para um rico comprador, deixando claro que ele poderia ter tido uma vida feliz e confortável se tivesse apostado no seu talento como pintor.
Em suma, como muitos dos filmes de Jean Renoir, A Cadela não busca a bajulação do espectador. O tom, em especial nesse relato, é pessimista, e levanta a questão de que ninguém é totalmente bom.
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Ficha técnica:
A Cadela (La Chienne) 1931. França. 91 min. Direção e roteiro: Jean Renoir. Elenco: Michel Simon, Janie Marèse, Georges Flamant, Mille Doryans, Pierre Desty, Lucien Mancini.