A Grande Dama do Cinema está no mesmo patamar de outras obras primas de Juan José Campanella.
O diretor Juan José Campanella já está consagrado como um dos maiores do cinema argentino. E, isso se deve a dois filmes essenciais: O Filho da Noiva (2001) e O Segredo dos seus Olhos (2009), este último vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro. Agora, A Grande Dama do Cinema confirma seu talento, desta vez mesclando os gêneros suspense, drama e humor negro.
No filme, Graciela Borges é Mara, uma ex-atriz que foi uma celebridade em seus anos de glória. Inclusive, ela ganhou um prêmio equivalente ao Oscar. Hoje, ela hoje vive com seu marido Pedro (Luis Brandoni), também ex-ator, mas que nunca fez sucesso e agora está inválido das pernas.
O casal divide a casa com dois outros veteranos do cinema, o roteirista Martín (Marcos Mundstock) e o diretor Norberto (Oscar Martínez), também aposentados. Então, chegam dois estranhos que fingem ser fãs da atriz. Na verdade, eles são dois golpistas imobiliários, interessados em comprar a propriedade para construir um novo empreendimento em seu lugar. Mara deseja vender a casa, mas os outros se negam, e o conflito está armado.
Referências
O filme desfila referências ao cinema, o que soa muito conectado ao tema da sua estória. Por exemplo, a brilhante sequência inicial espelha o que Alfred Hitchcock fez em Janela Indiscreta. Ou seja, revela a protagonista e a sua situação atual sem recorrer às palavras, apenas usando um travelling que passeia pelo cenário mostrando imagens que descrevem tudo. Logo, quando chega o momento de aparecerem as falas, elas também repetem a ideia de instigar o espectador, no caso, a descobrir quem são os dois amigos. De cara, pelas suas primeiras frases, descobrimos quem eles são: um diretor e um roteirista.
Tal qual Brian de Palma, em especial em Vestida Para Matar, Juan José Campanella insere objetos na trama que ganharão importância na estória, testando a atenção do espectador. Um deles relacionará o início do filme com o seu final, desde que se assista com atenção nos detalhes. Não revelaremos aqui para não estragar o prazer da descoberta.
Norma Desmond
Além disso, a casa e a própria protagonista remetem a Crepúsculo dos Deuses. Nesse filme de Billy Wilder, Gloria Swanson interpreta uma celebridade em decadência vivendo do passado. Então, tal como Norma Desmond, Mara Ordaz vive em um santuário de auto homenagem. Inclusive, há até uma pequena sala de projeção. Em certa cena, vemos um icônico plano com a imagem da atriz jovem, em um de seus filmes, projetada em cima de seu rosto envelhecido atual, uma clara alusão à sua obsessão pelo passado. Como objeto principal desse santuário, está a estatueta do “Oscar” (referência não explícita provavelmente por causa dos direitos de propriedade). Este é importante não só para a carreira de Mara, como também como centro de um dos segredos da trama.
Ademais, a estátua em posição agonizante que enfeita o jardim em frente à casa também cutuca a memória dos cinéfilos, que se lembrarão de Depois de Horas, de Martin Scorsese, e de O Desprezo, de Jean-Luc Godard. Adicionalmente, A Grande Dama do Cinema guarda também referência a si mesmo, espalhando simbolismos ao longo de sua estória. Por exemplo, o guaxinim que invade o galinheiro e o rato que entra na cozinha, ambos abatidos pelos dois amigos da casa. Trata-se de uma metáfora dos golpistas que entram na vida do quarteto.
Personagens encantadores
Por outro lado, A Grande Dama do Cinema encanta pelos seus personagens. Os quatro vivem na casa de Mara, com suas personalidades marcantes. Eles trocam alfinetadas um com o outro, como só os que compartilham muita intimidade podem fazer. Dessa forma, proferem diálogos deliciosos, principalmente para quem adora cinema.
A princípio, refletindo suas atividades profissionais anteriores, Martín e Norberto parecem dominar o cenário. Porém, logo Mara e Pedro também assumem suas posições, atuando na estória como se fossem a protagonista e o ator coadjuvante. O filme dialoga o tempo todo com o cinema, num exercício de metalinguagem em que vale até um literal fade-out na tela seguindo as instruções de Martín.
Quem não está tão familiarizado com o cinema se divertirá com a esperta trama do filme, além das piadas constantes nas provocações entre os personagens, alternando a comédia e o suspense. A partir de certo momento, o filme abraça o gênero dos filmes de golpes, como o excelente filme também argentino chamado Nove Rainhas (2000) de Fabián Bielinsky.
Os segredos são revelados aos poucos, assim, sempre mantendo o interesse do espectador. Como exceção, o roteiro dá uma escorregada no acidente duplo, que soa um tanto caricato. Mas, isso não prejudica o filme, até porque a sequência final, quando temos que descobrir quem tomou o veneno, é fantástica.
Programa obrigatório
A Grande Dama do Cinema é programa obrigatório para os cinéfilos, que se deleitarão com os vários easter eggs presentes na trama fazendo referência ao cinema. Afinal, não é só o universo Marvel que pode gerar easter eggs! É um filme para se assistir várias vezes, a primeira para descobrir a engenhosa trama, e as demais para se divertir procurando as referências. Campanella, mais uma vez, genial!
Ficha técnica
A Grande Dama do Cinema (El Cuento de las Comadrejas, 2019) Argentina. 123 min. Dir: Juan José Campanella. Rot: Juan José Campanella, Darren Klomook. Elenco: Graciela Borges, Oscar Martínez, Luis Brandoni, Marcos Mundstock, Clara Lago, Nicolás Francella.