Algum Lugar Especial demonstra a força de nossos estímulos mais íntimos.
A trama, baseada em acontecimentos reais, renderia um melodrama lacrimoso. Algum Lugar Especial conta o esforço de John, um pai em estado terminal, para encontrar a família adotiva ideal para Michael, seu filho de três anos. Como a mãe biológica fugiu de casa logo após Michael nascer, John o criou sozinho. Com isso, os dois desenvolveram uma relação muito próxima, com muito amor envolvido.
Assim, a história se desenvolve mostrando as várias famílias que a assistência social apresenta como candidatas à adoção. Em paralelo, vemos a saúde de John piorando, aos poucos e sutilmente, enquanto ele tenta executar seu trabalho de limpador de janelas. À beira de completar 34 anos, John percebe que ainda precisa amadurecer para aceitar essa transição imposta pela vida.
O filme mostra como ele se angustia diante dessa escolha tão difícil. De fato, é impossível saber qual família será a melhor para o filho, mas ele carrega um peso enorme tentando decidir sobre esse impossível. Afinal, ninguém pode prever o futuro. Em um raro momento de desabafo, ele coloca isso para fora ao conversar com a assistente social Shona, que acompanha os dois nas visitas. Dessa forma, ele compartilha com o espectador a mesma impressão de que alguns candidatos merecem ser sumariamente descartados, porém todos os demais parecem adequados.
Esse impasse é a linha central da narrativa. E, ela será resolvida com uma escolha surpreendente, que está muito ligada aos seus desejos mais íntimos. Sobre isso, falaremos aqui no final da crítica, para evitar spoilers.
Proteção
Por outro lado, o maior impasse para John se encontra em afrouxar o excesso de proteção que ele dedica a Michael. E esse é o grande arco do seu personagem, pois ele se transforma ao longo do filme em relação a esse aspecto. No início, John não quer que o filho leia um livro infantil que explica a morte para as crianças, apesar de as assistentes sociais recomendarem essa leitura. Em conversa com elas, o pai afirma que seria um peso muito grande Michael saber que ele foi adotado porque a mãe foi embora e o pai morreu.
No entanto, num passeio casual pelo parque, Michael encontra um besouro morto. Sem outra saída, John precisa explicar ao filho sobre a morte. Aos poucos, o pai começa a perceber que o menino não é mais um bebê, e que esse processo de amadurecimento está em franco progresso. Nesse sentido, vemos o ato cotidiano de atravessar a rua para ir à escola, em dois momentos. No primeiro, o pai precisa conduzir o filho e indicar para ele apertar o botão de pedestre. Já no segundo momento, o menino aperta sozinho e puxa o pai para a travessia, marcando seu rápido desenvolvimento.
Por fim, o pai aceita a ideia de que Michael, no futuro, precisa saber a verdade sobre a sua adoção e os motivos para isso. Assim, concorda em montar uma caixa de lembranças para que Michael, em momento apropriado, possa abrir e entender o seu passado. O cuidado com o qual John prepara cada detalhe prova todo o amor que ele tem pelo filho. E aí, inclui-se desde uma foto da mãe, até várias cartas que ele escreve e que coloca em envelopes vermelhos – a cor preferida do menino, como vimos na cena do aniversário.
Direção de Uberto Pasolini
O diretor italiano Uberto Pasolini começou a trabalhar no cinema britânico em 1983. Dez anos depois, fundou a produtora independente Red Wave Filmes, que realizou o megassucesso de bilheterias Ou Tudo ou Nada (1997). Na direção, possui apenas três créditos: Machan (2008), Uma Vida Comum (2013) e, agora, Algum Lugar Especial.
O personagem John, tal qual o John May do maravilhoso Uma Vida Comum, fala pouco. Portanto, o diretor precisa transmitir seus pensamentos e sentimentos através de suas ações. É o que ele faz em Algum Lugar Especial, como nos exemplos que citamos acima da calçada e da caixa de lembranças. Adicionalmente, isso afasta o tom apelativo da história, uma intenção clara do diretor, como ele afirma:
“Embora a situação em que os personagens principais se encontrem seja muito dramática, decidi abordar a história de uma forma muito sutil e ‘tranquila’. Ou seja, o mais longe possível do melodrama e do sentimentalismo, como em um filme de Yasujiro Ozu, ou de Jean-Pierre e Luc Dardenne.”
– Uberto Pasolini
Elenco
No papel de John, está James Norton, ator de A Sombra de Stalin (2019), Adoráveis Mulheres (2019) e Vozes e Vultos (2021). Ele também está na The Nevers, da HBO. E o menino Daniel Lamont faz o encantador Michael. O diretor tece elogios para a dupla:
“Felizmente, no jovem Daniel Lamont, então com quatro anos, encontramos um ator natural extraordinariamente consciente e sensível. E, em James Norton, um ator muito generoso, que ficou feliz em dedicar longos dias para criar uma conexão com o menino bem antes das filmagens. Além de apoiar e guiar Daniel durante o que teria sido uma experiência intensa e, às vezes, desconcertante, para qualquer criança.”
– Uberto Pasolini
A escolha (spoilers adiante)
Por fim, na última cena do filme, descobrimos qual dos candidatos John escolheu. É uma surpresa, pois ele opta pela mulher solteira que, aos 17 anos, doou seu bebê logo após ele nascer, e que agora não pode mais ter filhos. Assim, ele pretere outros candidatos que eram casais, um dos requisitos iniciais dele, bem como outros com melhores condições financeiras.
Talvez John se deixou influenciar por um dos candidatos que diz que é importante que os pais escolhidos não sejam de uma classe superior. Dessa forma, isso evita que eles vejam o pai biológico com desprezo. Ou então, John considerou que a mulher escolhida possuía uma situação similar à sua, quer seja, uma batalhadora. Com isso, o pequeno Michael poderá crescer como uma pessoa forte, pois não ganhará tudo facilmente.
Contudo, talvez o fator que mais o influenciou na sua escolha seja algo inconsciente que nem ele perceba. E é a condição de mulher solteira da selecionada, ou seja, não há um pai adotivo. Portanto, ele continuará sendo a figura paterna para Michael, algo que John, no fundo, deseja.
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Ficha técnica:
Algum Lugar Especial (Nowhere Special) 2020. Reino Unido/Itália/Romênia. 96 min. Direção e roteiro: Uberto Pasolini. Elenco: James Norton, Daniel Lamont, Eileen O’Higgins, Valerie O’Connor, Valene Kane, Keith McErlean, Sean Sloan, Siobhan McSweeney.
Distribuição: A2 Filmes.