Anatomia de uma Queda (Anatomie D’une Chute) é o novo filme dirigido por Justine Triet com roteiro dela e de Arthur Harari (o realizador do belo Onoda [2021]). Antes, a dupla lançou Sibyl (2019), que teve uma restrição de nossa parte pela sua visão sexista, uma impressão que agora pede uma revisão diante desse novo trabalho cheio de nuances. Talvez encontremos em Sibyl uma crítica nessa simplificação estereotipada, que não foi percebida quando o assistimos pela primeira vez.
Sobre a queda
Enfim, deixemos de lado esse filme anterior para nos concentrarmos em Anatomia de uma Queda, o vencedor da Palma de Ouro em Cannes em 2023. A proposta de misturar filme de tribunal com melodrama conjugal resultou numa trama envolvente. Enquanto o público acompanha o desnudamento de um casamento que se desmorona, paira também a dúvida se aconteceu algum crime na morte do marido Samuel (Samuel Theis), que caiu do piso superior do sobrado onde o casal mora com o filho de onze anos Daniel (Milo Machado Graner). A esposa, Sandra (Sandra Hüller), se torna a suspeita, diante das evidências de brigas do casal.
Mas o filme também evoca motivos velados. Um deles é o patriarcalismo, pois Sandra é uma escritora conhecida, enquanto Samuel tenta em vão escrever enquanto cuida do filho e da casa. O outro motivo seria o preconceito pela bissexualidade de Sandra. Por fim, cabe ainda o xenofobismo porque ela é alemã – então, é vista como fria e calculista. Em determinadas ocasiões, a acusada precisa falar obrigatoriamente em francês, prejudicando sua argumentação.
Como aliado, Sandra conta com um advogado que é um velho amigo (e ex-namorado), Vincent (Swann Arlaud). Diante dele, bem como do tribunal, Sandra afirma que não matou o marido. Como um acidente seria improvável, a linha de defesa sustenta a tese de suicídio. A interpretação de Sandra Hüller não permite que o público descubra se ela provocou a morte do marido. Por um lado, ela não esboça aquela tristeza imensa pela perda de uma pessoa amada. Mas, por outro, não revela um ódio capaz de levar a um ato criminoso.
O olho do observador
Perto da segunda metade do filme, o investigador policial leva uma gravação em áudio da briga do casal um dia antes da morte. É o momento mais tenso do filme, que traz um flashback que adiciona imagens a esse registro sonoro. Na discussão, surgem os temas citados acima, do patriarcalismo, da bissexualidade e do xenofobismo. A diretora Justine Triet, nessa sequência, toma uma decisão crucial que eleva a sua obra: não mostra visualmente o confronto físico entre os dois, que poderia definir se havia ódio na relação para levar ao crime, ou uma frustração depressiva que conduzisse ao suicídio. Além disso, se alinha com a percepção do filho Daniel, que possui uma deficiência visual.
O uso da câmera trêmula, tão comum no cinema autoral contemporâneo, marca forte presença. Mas Justine Triet dosa bem o seu uso. Emprega-o acertadamente em momentos de tensão, como nesse flashback da briga do casal, e para mostrar a visão de Daniel, em especial quando ele está sentado junto com o público no tribunal. Lá, Daniel vê parcialmente a mãe, com outras pessoas na frente obstruindo parcialmente sua vista. E isso retrata o que ele está sentido, ou seja, a dúvida se ela é culpada ou não.
A conclusão
Anatomia de uma Queda apresenta, por fim, uma conclusão inteligente. Transforma o filho no principal juiz desse processo. Ele percebe que necessita decidir se ele pensa que a mãe matou o pai ou se esse suicidou. Se ficar na dúvida, se sentirá atormentado pelo resto de sua vida. Então, tira suas próprias conclusões a partir da única verdade que ele tem, e seu depoimento é que acabará por decidir a sentença da mãe. A verdade, de fato, só a personagem Sandra conhece. E Justine Triet faz questão de nunca mostrar o flashback do que realmente aconteceu. Que o espectador fique para sempre com a dúvida, ou, como Daniel, que escolha uma verdade.
