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Deserto Particular (filme)
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Deserto Particular

Avaliação:
9/10

9/10

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Crítica | Ficha técnica

Para começar, Deserto Particular prova que o que importa num filme não é a sua história em si, mas como ela é contada. O seu enredo poderia se resumir em uma linha, mas não faria jus a sua grandeza. Por isso, para resumir com mais propriedade do que ele se trata, melhor falar de seu tema, ou seja, o do amor que vence preconceitos.

No intuito de desenvolver a trama de Deserto Particular, o cineasta Aly Muritiba não se precipita. Sem pressa, ele se aprofunda nos personagens, pois a superficialidade os transformaria em estereótipos e, como consequência, arruinaria a obra. Por isso, o filme possui um extenso prólogo, que mostra uma primeira camada da personalidade de Daniel, a do filho zeloso que cuida do pai, um ex-militar que perdeu a memória. Está apaixonado por Sara, a quem só conhece virtualmente.

Ademais, é um policial que está suspenso porque agrediu um recruta durante um treinamento. Quando Sara para de responder às suas mensagens, ele deixa vir à tona esse seu lado explosivo. A educação rígida o tornou um homem duro, e conservador, que fecha a cara quando a irmã mais nova lhe conta que tem uma namorada. Por não se conformar com o silêncio de Sara, pega o seu carro e dirige de Curitiba até Sobradinho, na Bahia, para procurá-la.

Sara

Tal como fez em seu filme Ferrugem (2018), Muritiba sai da perspectiva de um protagonista e apresenta a de outro. Desta vez, a transição acontece logo após o encontro de relance entre Daniel e Sara, que foge. O espectador já percebeu, e só Daniel não consegue ver, que Sara não é uma mulher.

Quando eles se encontram de fato, sentados em uma mesa de uma boate, a câmera insiste em mostrar Sara através de seu reflexo no espelho. Esse recurso é comum no cinema, revelando o seu duplo, pois Sara costuma se apresentar na sociedade como um rapaz, de nome Robson. Porém, Daniel também poderia estar no espelho, porque, como Sara lhe diz, ele mente para si mesmo. Caberia até repetir a observação de Dil para Fergus, em Traídos pelo Desejo (The Crying Game, 1992), de Neil Jordan, quando ela fala que pensava que ele já havia notado.  

Muritiba trabalha essa questão com mais maturidade do que Neil Jordan, até porque os tempos são outros. Deserto Particular não apresenta o gênero de Robson como uma surpresa, tal qual fez o filme do cineasta irlandês. Pelo contrário, o introduz como uma pessoa sensível, que precisa se esconder porque a família o rejeitou. De sua boca, vem uma metáfora perfeita, comparando-se às águas da gigantesca represa. O que ele deseja mesmo é repetir a história de Sobradinho, cuja cidade original ficou submersa sob as águas da barragem, e se reconstruiu do zero.

Ainda na apresentação desse protagonista, há um paralelo de bom mocismo, pois ele mora com avó, da mesma forma que Daniel com o pai. Porém, nesse caso, foi uma imposição do pai, para que a avó o “curasse”. Por tudo isso, Robson prefere observar, incógnito, no barco, o que Daniel diz ao amigo, antes de se conhecerem.

Por baixo da casca dura

Daniel sofre porque sua carcaça impede que o amor por Sara aflore. Mas, ao quebrar o gesso do braço com o qual agrediu o recruta no treinamento policial, ele se abre para a sensibilidade. Um pouco antes, viu Sara com o vestido que ele lhe presenteara – a fotografia nessa cena demonstra como Daniel a vê belíssima. Então, quando ele encontra Sara na rodoviária, ele está diferente, com a sensibilidade que lhe faltava.

O que se segue não é uma cena romântica típica de Hollywood. A canção que embala esse momento é “Total Eclipse of the Heart”, de Bonnie Tyler, hit dos inferninhos, que encaixa bem na cena em que os protagonistas se encontram, mas aqui resvala na breguice. O casal não vai para a cama, mas extravasa o desejo ali mesmo, no banheiro da rodoviária. Por fim, ninguém declara se amar, mas ambos seguem seus caminhos felizes com essa experiência positiva que lhes dá esperança.

Por outro lado, Deserto Particular também inspira esperança para o Brasil. Não porque é a escolha para disputar o Oscar de filme internacional – talvez uma tentativa de repetir o feito do chileno Uma Mulher Fantástica (Una Mujer Fantástica, 2017), vencedor do prêmio em 2018. Mas, por apresentar um personagem endurecido por uma educação militar, que se transforma pelo amor, e outro sufocado por parentes que se valem da religião para justificar o preconceito, assim construindo um poderoso paralelo com a população brasileira e a atual situação política e social do país. Sob esse aspecto, o Oscar teria uma importância gigantesca.


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