Durval Discos custa a ir da sátira ao sombrio.
Curiosamente, a apresentação dos personagens principais é a melhor parte do filme. O protagonista Durval (Ary França) equilibra o caricato e o real, representando o solteirão que ainda vive com a mãe e insiste em se sustentar com um negócio obsoleto: a venda de discos de vinil. Tem um pouco do personagem de John Cusack de Alta Fidelidade (High Fidelity, 2000), de Stephen Frears, mas não é tão entendido em música como ele (se fosse, seria mais interessante). Seu encanto está em ser um perdedor simpático e com boas intenções.
A mãe dele, dona Carmita (Etty Fraser), possui o arco de desenvolvimento que move a narrativa. A princípio, uma mãe como todas as outras de seu tempo. Preocupa-se com o filho e cuida dos afazeres da casa, mesmo sendo ele um adulto. Mas a independência de Durval, inevitável, cria um potencial problema de carência, ou de fragilidade por não se sentir mais útil. Então, quando surge uma oportunidade para reviver o papel de mãe de uma criança pequena, ela descamba para um comportamento doentio.
O filme ainda conta com Elisabeth (Marisa Orth), a amiga de Durval que trabalha na loja de doces vizinha. A afeição entre os dois é evidente, mas ainda não transformada em um relacionamento mais íntimo. E, embora a amizade ainda não seja colorida, a personagem é, e Marisa Orth aqui funciona bem com seu turbilhão natural, pois aparece pouco em cena.
Quem também entra rapidamente e convence é Letícia Sabatella, como a empregada que Durval contrata para ajudar a mãe. Bonita, ela convence com facilidade o novo empregador a contratá-la rapidamente. Porém, acaba se provando uma vigarista.
Mudança de tom
Toda essa apresentação dos personagens e desse ecossistema envolve o espectador. Mas esse equilíbrio, tanto na história quanto na produção em si, se quebra quando entra a menina Kiki. O filme sofre com a interpretação artificial da atriz mirim, e com a trama que perde o fio da meada. Dona Carmita se encanta pela criança, mas Durval é mais racional, e até contrário a mantê-la na casa. O enredo parece pular etapas, e logo a menina não dorme mais no quarto dos fundos, mas na casa principal, dentro do quarto de Durval – mas sem desenvolver essa mudança do protagonista apropriadamente.
Além disso, o filme perde tempo com participações especiais de Rita Lee, André Abujamra e Theo Werneck. Não são necessárias e nem engraçadas o suficiente para justificar essas presenças.
As atitudes dos protagonistas se tornam cada vez menos convincentes, e a empatia até então construída desmorona. Para que o filme se salve, é preciso que o tom se volte para o sombrio. E isso acontece, pois Durval Discos abraça a loucura como origem dos absurdos que surgem na tela. Lembram comédias malucas, como Do Mundo Nada se Leva (You Can’t Take it with You, 1938), de Frank Capra, por conta da menina com roupa de bailarina e da família excêntrica; e Levada da Breca (Bringing Up Baby, 1938), de Howard Hawks, por causa do cavalo (ou do leopardo) dentro de casa.
A direção
Por outro lado, a direção de Anna Muylaert revela, nessa sua estreia em longas, traços de talento que ela consolidaria em Que Horas Ela Volta? (2015). Por exemplo, o uso de portas e paredes para criar molduras dentro dos enquadramentos, para direcionar o olhar do espectador ou aumentar a sensação (intimidade, pressão etc.) prevista para a cena. A sequência de abertura, aliás, entra no maneirismo. É um plano-sequência que passeia pela Rua Teodoro Sampaio, onde se localiza a loja Durval Discos, trazendo os créditos dos artistas do filme camuflados na paisagem. Cabe, ainda, mencionar o enquadramento com o corpo na cama, em primeiro plano, e a ação acontecendo ao fundo, usando o recurso de profundidade de campo como Orso Welles fez em Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941).
Contudo, esses e outros momentos de boa direção não são suficientes para compensar os detalhes falhos da trama e a demora na transição do tom. Ajustados esses mecanismos, Durval Discos poderia se aproximar de Este Mundo é um Hospício (Arsenic and Old Lace, 1944), outro filme de Frank Capra que ganha citação nessa crítica.
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Ficha técnica:
Durval Discos | 2002 | Brasil | 96 min | Direção e roteiro: Anna Muylaert | Elenco: Ary França, Etty Fraser, Isabela Guasco, Marisa Orth, Letícia Sabatella, Rita Lee, André Abujamra, Theo Werneck.
Distribuição: Vitrine Filmes.
Assista ao trailer aqui.