“Era Uma Vez No Oeste”: E um italiano é autor de um dos maiores westerns do cinema
Um diretor italiano ousando realizar um western, o mais norte-americano dos gêneros cinematográficos, seria como um gringo tentando tocar samba? Provavelmente, mas quando o sujeito possui o talento de um Sergio Leone, o resultado pode ser uma obra-prima. “Era Uma Vez No Oeste” segue a famosa trilogia dos dólares de Leone, composta por “Por Um Punhado de Dólares” (Per un pugno di dollari, 1964), “Por Uns Dólares a Mais” (Per qualche dollaro in più, 1965) e “Três Homens em Conflito” (Il buono, il brutto, il cativo, 1966). Esse três filmes tiveram ótima repercussão. E isso permitiu que as novas filmagens agora ocorressem parcialmente no famoso Monument Valley, nos EUA, locação predileta dos faroestes de John Ford. E Leone trabalha aqui a partir da história que ele criou ao lado dos talentosos diretores Dario Argento e Bernardo Bertolucci.
Imagens icônicas
As largas telas em scope abrem a icônica sequência inicial. Nela, três pistoleiros, liderados pelo ator negro Woody Strode, que trabalhou com Ford em “Audazes e Malditos” (Sergeant Rutledge, 1960) e outros filmes, aguardam em uma estação de trem por um passageiro específico que querem assassinar. Praticamente sem diálogos, essa cena constrói um suspense que cresce à medida que o tempo passa, por causa do atraso do trem. Os ruídos diegéticos contribuem para esse clima, quando até o som de uma mosca ou de um pingo d’água se tornam enervantes. Então, a locomotiva aparece, e os funcionários descem uma caixa de mercadoria, mas, aparentemente, nenhum passageiro desembarca. Eis que, quando o último vagão se afasta, ao som de uma gaita, surge Harmonica, o herói sem nome que dizima com habilidade seus executores.
A sequência seguinte, igualmente inesquecível, começa com a preparação da família McBain para receber a mãe, Jill (Claudia Cardinale), ausente por vários anos. Tiros à distância matarão o pai, a filha e o filho mais velho.. O mais novo, uma criança de sete anos, receberá um tiro à queima roupa, friamente disparado pelo cruel vilão de “Era Uma Vez No Oeste”. Surpreendentemente, quem o interpreta é o clássico mocinho Henry Fonda. Desta forma, produz uma das maiores quebras de paradigma em elenco do cinema. Morton (Gabriele Ferzetti), o dono de uma empresa ferroviária, contratou o assassino Frank para se apossar das valiosas terras dos MCBains. O próximo alvo de Morton, agora, é a sobrevivente Jill, que receberá a proteção de Harmonica.
Referências
Sergio Leone elenca várias referências do gênero que asseguram que o seu spaguetti western em “Era Uma Vez No Oeste” soe familiar aos espectadores acostumados às produções americanas. Assim, a espera do trem que trará uma pessoa aguardada remete a “Matar ou Morrer” (High Noon, 1952), de Fred Zinnemann. Ademais, as locações no Monument Valley lembram vários clássicos de John Ford, cujo “Rastros de Ódio” (The Searchers, 1956) influenciou o clima de perigo rodeando uma família, no ataque aos McBains.
Quando o menino mais novo dessa família, ainda uma criança, brinca de ser um caçador, “Os Brutos Também Amam” (Shane, 1953) vem à mente. Além disso, o personagem que se caracteriza por tocar gaita certamente se inspira em “Johnny Guitar” (Johnny Guitar, 1954), apenas com o detalhe de tocar outro instrumento. Se pensarmos nos tempos atuais, é a fórmula que J. J. Abrams usa, com êxito, nos seus filmes das franquias “Jornada Nas Estrelas” (Star Trek) e “Star Wars”, só que se concentrando somente nesses universos específicos.
Direção inventiva
Contudo, Leone vai além das meras referências. A criatividade de sua direção se evidencia durante vários momentos do filme. Por exemplo, como naquele em que filma Fonda e Cardinale na vertical, como se fossem discutir. Então, surpreendendo o espectador com uma movimentação da câmera que revela que os dois estão deitados na cama, prestes a fazerem sexo. Cena similar de “Te Amarei Para Sempre” (The Time Traveler’s Wife, 2009) ficou famosa, o que prova como Leone foi visionário. Em “Era Uma Vez No Oeste”, ela abre a oportunidade de conhecermos o passado de Jill. Ela trabalhava como prostituta em outra cidade, explicando que sua sensualidade latente, e ousada para o papel de uma mãe, não era gratuita.
O diretor emprega várias vezes o close up extremo durante o filme. Chega a quase entrar dentro dos olhos de Charles Bronson na cena épica do duelo com Henry Fonda. Então, finalmente o espectador poderá visitar o impenetrável íntimo do herói de poucas palavras. E, então descobrir o significado da sua visão recorrente da imagem desfocada de um homem caminhando em sua direção no deserto. A revelação é inesquecível e chocante, justificando o motivo que o leva a dedicar sua vida à vingança. E explica também o porquê da gaita, cujo som passa a ganhar ares de lamento.
Personagens multifacetados
“Era Uma Vez No Oeste” ainda abre espaço para o lado sentimental do vilão capitalista, ao observar um quadro com as ondas do Oceano Pacífico em seu escritório, localizado dentro de um vagão de um dos seus trens. Não sabemos se é um desejo de retornar à sua infância ou de escapar para um futuro menos amargo, onde não sofresse tanto por ter suas pernas paralisadas. O ciclo de sua aspiração poética se fechará quando, moribundo, alcança desesperado um pequeno filete de água, e sucumbe ouvindo o som das ondas do mar.
O filme marca a tentativa de Sergio Leone de dar longevidade ao gênero, cujo fim simbolicamente fora decretado pelo seu maior mestre, John Ford, em “O Homem Que Matou o Fascínora”, diante dos revolucionários anos 60, que logo explodiria nas telas com a geração Nova Hollywood. Leone se faz representar pelo personagem de Charles Bronson, que dá as costas para a modernidade que chega ao Oeste com a ferrovia. Harmonica poderia se adequar aos novos tempos e retomar sua vida na nova urbanidade que nascia, uma vez cumprida sua missão de vingança. Porém, opta por partir e seguir errante como os clássicos mocinhos do western clássico.
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Ficha técnica:
Era Uma Vez No Oeste (C’era una volta il West, 1968) 175 min | Direção: Sergio Leone | Roteiro: Sergio Donati & Sergio Leone | Elenco: Claudia Cardinale, Henry Fonda, Jason Robards, Charles Bronson, Gabriele Ferzetti, Paolo Stoppa, Woody Strode, Jack Elam, Keenan Wynn, Frank Wolff, Lionel Stander.
Assista: o faroeste em “Os Intocáveis”