Garotas do ABC possui vários protagonistas, todos dessa região industrial da Grande São Paulo. A ideia do seu realizador Carlos Reichenbach era fazer uma série de filmes com eles, o que daria espaço para tantas histórias assim. Mas, mesmo nesse formato forçadamente enxuto, é um filme que, em grande parte, resistiu ao tempo.
Essencialmente, sua trama aborda a presença perigosa da extrema direita nos dias atuais – lembrando que o filme é de 2003. O mentor de um desses grupos é Salesiano de Carvalho, vivido por Selton Mello. São suas palavras, inspiradas pelo Movimento Integralista, que motivam as violentas ações de seus companheiros. Porém, esses brucutus não possuem capacidade de raciocinar com lucidez, então, partem para a agressão inconsequente contra as vítimas de seus preconceitos.
Tema explosivo
Reichenbach parece trabalhar esse tema explosivo com luvas de pelica. Por isso, faz questão de não mostrar explicitamente o espancamento de nordestinos pelos extremistas. Ao contrário, prefere retratar essa cena através das sombras dos envolvidos, num efeito atenuante que, provavelmente, ele escolheu para não incentivar que essas ações se repliquem.
Por outro lado, Salesiano beira a loucura e o filme não o leva a sério. Da mesma forma, também não dá muita importância aos seus “soldados”, que passam o tempo jogando sinuca e bolando ataques aos não-brancos. Em certo momento, temos a impressão que Reichenbach brinca com os cinéfilos quando revela a letra “M” nas costas de Salesiano, tal como no assassino do filme M, o Vampiro de Dusseldorf (1931). Então, ele desmente essa percepção ao virar a câmera e entregar que o “M” é, na verdade, um sigma, símbolo do Integralismo. Vale dizer que este é um movimento de extrema-direita com inspiração fascista.
Perda da razão
A perda da insensatez de Salesiano se evidencia com o uso da câmera que gira várias vezes em 360 graus ao redor dele. Reichenbach amplia o efeito que Brian De Palma usa em Trágica Obsessão (1976). Na primeira vez que isso acontece, a cena beira o onírico, pois vemos ao fundo trabalhadores negros quebrando as rochas como escravos, enquanto Salesiano debocha deles. Aliás, o longa apresenta outra cena fantasiosa, em que as costas de uma operária negra estão cheias de feridas de chicoteadas. Na verdade, elas desaparecem e dão lugar ao ferimento do corte da máquina da tecelagem.
O destino desses extremistas na trama é o perecimento. A conclusão mostra Salesiano declarando suas teorias fascistas, enquanto os membros de sua turma se tornam vítimas da verdadeira força clandestina da região, que é a milícia dos justiceiros. De forma similar, o neonazista se mata porque não suporta o conflito entre o seu racismo e o seu amor por uma negra.
Pouco tempo para as garotas
Assim, acabamos por focar nossa atenção nesse jogo político e social. E que, ainda, envolve o outro lado, o dos sindicalistas de esquerda. Ou seja, a ideia inicial de retratar a vida das operárias, as Garotas do ABC do título, fica em segundo plano. Aurélia Schwarzenega, Antuérpia, Paula Nélson etc., são personagens interessantes, mas cresceriam com maior tempo em tela, o que permitiria maior aprofundamento de suas características.
Por isso, a conclusão soa um tanto simplista. O filme se encerra com uma piada. Ou seja, Aurelia iniciando um novo romance com um japonês, trocando sua admiração por Arnold Schwarzenegger por Bruce Lee, outro ídolo de filmes de ação, como ela mesmo menciona. Soa como se Garotas do ABC sugerisse que a miscigenação no Brasil será a solução para os conflitos raciais, ideia enfatizada pelas letras da canção que fecha o filme.
Em todo caso, Carlos Reichenbach consegue prever, em 2003, o crescimento desse extremismo de direita que se tornou cada vez mais atuante no Brasil. Quem dera, tudo isso se resolvesse rapidamente como no filme.
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Ficha técnica:
Garotas do ABC (2003) Brasil. 2h10min. Direção: Carlos Reichenbach. Roteiro: Fernando Bonassi, Carlos Reichenbach. Elenco: Michelle Valle, Vanessa Alves, Nathalia Lorda, Lucielle di Camargo, Vanessa Goulart, Fernanda Carvalho Leite, Marcia de Oliveira, Viviane Porto, Lina Agifu, Kelly di Bertolli, Ana Cecília Costa, Mariana Loureiro, Antonio Pitanga, Rocco Pitanga, Ângela Correa, Fernando Pavão, Selton Mello, Dionísio Neto, Eduardo Sofiatti, Milhem Cortaz, Vera Mancini.
