A sequência dos créditos iniciais antecipa a sensação que o filme Misericórdia provoca no espectador. A câmera dentro de um carro registra o caminho repleto de curvas em uma estrada estreita. Acompanhada por uma trilha musical de suspense, parece que o carro vai se acidentar. É difícil prever o que virá depois de cada curva.
Assim se desenrola a trama, sempre imprevisível. O motorista do carro é Jérémie Pastor (Félix Kysyl), que retorna à sua pequena cidade natal para o funeral de um homem. O roteiro faz questão de não entregar logo de cara qual a relação entre eles. Martine Rigal (Catherine Frot), a esposa do falecido, recebe Jérémie com carinho em sua casa, onde ainda está o corpo. Lá ele encontra um rapaz da mesma idade que o cumprimenta com beijos no rosto (habitual costume francês) mas sem dizer nada. Após o enterro, como já é tarde, Martine o convida a passar a noite na casa.
Na manhã seguinte, Jérémie visita o vizinho Walter, que parece não gostar dele. E resolve passar mais uns dias hospedado na casa de Martine, o que traz à tona a antipatia daquele rapaz que o cumprimentou ao chegar. Ele é Vincent Rigal, filho de Martine, que suspeita que Jérémie quer dormir com a mãe dele.
Dissimulação
Na verdade, Jérémie, Vincent e Walter têm a mesma idade, e conviveram juntos quando eram jovens. E Jérémie sentia uma paixão imensa pelo pai de Vincent que acaba de falecer. Mas, isso é apenas o começo. Outros personagens misteriosos surgem no enredo, bem como eventos surpreendentes. Um dos personagens é o padre, que sempre aparece no caminho de Jérémie, inclusive quando ele faz algo errado. Essa quase onipresença é importante para a trama, pois o padre parece saber de tudo – e tem seus segredos também. Entre as estranhezas do filme, se destaca a cena em que o padre se confessa para Jérémie, invertendo os papéis da Igreja.
A partir de certo ponto, Misericórdia ganha tons de filme policial. E, assim, Jérémie se aproxima do personagem principal de “O Talentoso Ripley”, livro de Patricia Highsmith já adaptado várias vezes para o cinema. Ambos possuem motivações psicológicas ocultas que não conseguem controlar, portanto são dissimuladores e perigosos.
A direção e o roteiro de Alain Guiraudie são precisos. Detalhes da trama aparentemente insignificantes se revelam cruciais, como a caça aos cogumelos, ou providenciais, como o relógio digital ao lado da cama onde Jérémie dorme que permite localizar no tempo os acontecimentos, já que muitos deles se passam de madrugada. Elementos como o som do vento que balança as folhas, do caminhar sobre as folhas, da chuva caindo, constroem o ambiente ideal que o enredo exige. Ou seja, um lugar úmido, frio e afastado.
Longe de ser um dos vários filmes medianos produzidos na França, Misericórdia foge do lugar comum. Nele, nada é previsível – basta lembrar da cena em que o padre se levanta da cama para provar uma verdade ao policial.
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Ficha técnica:
Misericórdia | Miséricorde | 2024 | 102 min. | França, Espanha, Portugal | Direção: Alain Guiraudie | Roteiro: Alain Guiraudie | Elenco: Félix Kysyl, Catherine Frot, Jean-Baptiste Durand, Jacques Develay, David Ayala, Serge Richard, Tatiana Spivakova, Elio Lunetta, Sébastien Faglain.
Distribuição: Zeta Filmes.